Colunistas

Quando as fotos desaparecem

Ainda sentimos os efeitos das enchentes de maio. Algo que me afeta mais diretamente é que em Cerro Branco meus pais foram atingidos. Perderam quase todos os móveis de dentro de casa. Conversando com meu pai, ele disse que os móveis eram o de menos. Do que ele sente falta é das fotografias que tinha quando criança, do casamento com a mãe, imagens minhas e da minha irmã quando criança. Ele me perguntou: tem um jeito de recuperar? Disse que algumas até daria para recuperar, mas seriam poucas. Isso me fez ficar pensando o quanto de memórias foram perdidas nessa enchente, e também sobre os jovens não imprimirem mais as fotos e as terem somente salvas nos smartphones e em nuvens online.

Perder fotos em uma enchente é mais do que apenas perder objetos físicos ou registros digitais. É perder memórias, momentos congelados no tempo, pedacinhos de vida que, muitas vezes, são irrepetíveis. Cada fotografia carrega uma história, um sentimento, uma lembrança que não pode ser recuperada por completo, mesmo que a gente tente.

LEIA TAMBÉM: Recortes de humanidade – IV

Publicidade

Imagine abrir um álbum de fotos ou acessar um disco rígido para revisitar um passado que agora parece distante. A expectativa de rever os rostos sorridentes de pessoas queridas, momentos que marcaram fases importantes da vida, o crescimento de alguém ou as conquistas de anos. Mas, ao invés disso, encontrar apenas vazio.

A água, implacável, não faz distinção entre o que é essencial ou não. Ela invade, destrói, apaga. As fotos que guardamos, sejam em papel, em álbuns ou arquivos digitais, são mais do que registros visuais; são portais para as nossas memórias mais profundas. Uma foto de infância, por exemplo, é capaz de nos transportar para aquele exato momento. Sentimos o cheiro da casa dos avós, lembramos da textura dos móveis antigos, das brincadeiras no quintal, das risadas e das broncas. Uma foto de um evento especial nos lembra da euforia, da união, do calor humano que sentimos naqueles dias. E quando tudo isso desaparece, o que resta?

O impacto emocional dessa perda é devastador. Para muitas pessoas, as fotos são o último laço com alguém que já se foi. Talvez aquele retrato desbotado dos pais quando jovens, ou a foto com o amigo que partiu cedo demais. Quando essas lembranças físicas desaparecem, parece que o vínculo que tínhamos com esses momentos também se enfraquece. Há um vazio que não pode ser preenchido. A dor de não poder rever esses momentos é profunda, como uma ferida que parece não cicatrizar. E, com o tempo, surge o medo de esquecer. Esquecer o rosto de um ente querido, o detalhe de um sorriso, o brilho nos olhos em um momento específico.

Publicidade

Esquecer os lugares que visitamos, as pessoas que conhecemos, os momentos que nos moldaram. As fotos, mesmo que estáticas, têm o poder de ativar essas lembranças. Elas nos ajudam a manter vivas as nossas experiências, os nossos afetos, a nossa trajetória.

LEIA TAMBÉM: Uma cidade de cinema

O que somos hoje é resultado de tudo o que vivemos, e perder essas provas visuais da nossa existência deixa uma sensação de incompletude, de desamparo. Claro, podemos tentar refazer essas memórias, contar histórias, ouvir relatos de familiares e amigos. Mas a verdade é que, sem as imagens, essas lembranças acabam por se tornar fragmentadas, subjetivas. Cada pessoa vai se lembrar de um detalhe diferente, e, aos poucos, o que era uma recordação clara vai se transformando em uma narrativa embaçada pelo tempo.

Publicidade

A fotografia tinha o poder de nos ancorar à realidade, de nos dar a certeza de que aquele momento realmente aconteceu, de que aquela pessoa realmente esteve ao nosso lado. Agora, sem elas, resta-nos confiar na nossa própria memória, que nem sempre é justa ou precisa.

Com a mudança da era digital, o velho hábito que nossos avós tinham de imprimir as fotos acaba sendo esquecido também. Com a popularização dos smartphones e câmeras digitais, as fotos passaram a ser instantâneas e facilmente acessíveis nas telas dos dispositivos. Isso eliminou a necessidade de revelá-las para vê-las, como era necessário na era da fotografia analógica.

Imprimir fotos ou revelar dá às memórias um valor tangível e duradouro, permitindo que momentos especiais sejam revividos de forma mais emocional e pessoal. Fotos impressas não dependem de dispositivos ou tecnologias, tornando-se lembranças físicas que podem ser passadas de geração em geração. Além disso, a impressão preserva imagens importantes de possíveis perdas digitais, como falhas em discos rígidos ou exclusões acidentais, mantendo vivas as conexões com o passado.

Publicidade

LEIA MAIS TEXTOS DE FORA DE PAUTA

Bruno da Silveira Bica

Share
Published by
Bruno da Silveira Bica

This website uses cookies.