Faz 18 anos que a professora universitária Maria Beatriz Oliveira da Silva, 58 anos, intercala duas moradas. De fevereiro a dezembro, a Bia, como é conhecida pelos amigos que fez nas duas décadas que morou em Santa Cruz do Sul, reside no coração do Rio Grande: em Santa Maria. De dezembro a fevereiro é a França, mais precisamente Paris, onde aproveita os dias que ganham uma companhia bem especial: o Henri, seu “marido sazonal”. “Em 2001 ele veio de Paris fazer uma visita a alguns amigos de Santa Cruz e acabamos nos conhecendo. Quando não estamos juntos, falamos todos os dias por telefone (à moda antiga). Batizei essa relação de casamento sazonal”, brinca.
Explicado o começo do amor duplo de Bia pela França, a professora gosta de deixar bem claro que o país deixou, há tempos, de ser aquele que ainda habita o imaginário de alguns. “O chamado Estado do Bem-Estar Social francês não existe mais e o que restou dele continua sendo corroído pelas políticas neoliberais – razão dos permanentes movimentos de rua por aqui.”
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Bia escreveu para o Longe de Casa durante suas férias em Paris. E, quando encara as temporadas por lá, procura absorver o máximo da cultura francesa. Frequenta museus, vai a seminários e conferências, não deixa de assistir a bons filmes no cinema e acompanha de perto o notíciário local. “Acabo de ler uma notícia cujo título é ‘Paris capitale touristique des plus fortunes’, na tradução: Paris, a cidade-luz, continua sendo o destino preferido dos mais ricos.” Frente a essa manchete, ela observa que a cidade volta a registrar o crescimento das “bidonvilles” (favelas) nos arredores. Nos anos 80, o problema havia sido erradicado mediante construção de moradias acessíveis. “Apresento esta realidade para não vender ilusões. São muitas as coisas que eu percebo que pioraram em Paris nesses 18 anos. Mas as coisas boas também são muitas, e eu nem teria como citar neste espaço.”
Os estereótipos nunca convenceram Bia. Embora seja a cidade da moda e do glamour, ela observa que as pessoas, de um modo geral, saem com as roupas do trabalho e vão direto à opera ou a outros eventos mais formais. Natural de Cachoeira do Sul, ela também reforça que, ao pedir orientações para um morador local, é importante arranhar nem que seja um pouquinho só de francês. “Eles sempre preferem ver um esforço da pessoa em dizer, pelo menos, uma frase em francês, para depois dar a informação solicitada.” Feliz com a recepção local, a professora observa que os moradores com quem hoje tem contado gostam dos brasileiros e se mostram preocupados com a situação do Brasil.
Incentivada desde cedo, cultura é preservada
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Na França, a preservação da cultura é estimulada desde muito cedo. Prova disso é a gratuidade dos museus e as políticas de incentivo à visitação desses espaços: estudantes e professores pagam meio ingresso; grupos organizados recebem descontos e escolas têm prioridade para agendamento de visitas. Bia lembra, aliás, a primeira vez que foi ao museu Picasso, quando seguiu uma professora que acompanhava uma turma de primeira série. “A cada sala que chegavam, as crianças se acomodavam no chão. A professora fazia observações sobre as obras e indagava os aluninhos sobre as suas impressões (aprendi muito sobre Picasso com a professora e com as crianças!).”
Vinhos e queijos
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Amantes de vinhos, atenção: na França, a classificação da bebida está diretamente ligada ao “terroir” (a região e/ou parcela de terra) em que é produzido e não pela cepa (tipo de videira), como ocorre no Brasil e em outros países. Assim, em vez de classificar o vinho como Cabernet, Pinot Noir ou Carmenere, eles são rotulados pela origem: Borgonha, Bordeaux, Côte du Rhone e por aí vai. Já os queijos, bem, aí Bia lembra a célebre citação do general De Gaulle. “Como governar um país onde há 246 variedade de queijos?” E olha que esse número só cresceu. Dados do Centro Nacional de Economia leiteira dão conta de que hoje existem até 1.200 tipos, também produzidos de acordo com a vocação do local. “Digo ao Henri que, por vezes, chego a ter dúvidas se tenho mais saudade dele.
Terrorismo
Ainda que alguns episódios de violência terrorista, como o ataque de novembro de 2015, tenham assustado a população, Bia Oliveira tem a percepção de que as pessoas não se entregam para o medo. “Elas não alteraram suas rotinas e nem acham que devem andar armadas para se proteger. O que aumentou foram as formas de vigilância, tanto em locais públicos como privados”, observa
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Cozinha fresca, produção local valorizada
Bia pode até observar alguns fatos que tornam a França nem tão “perfeita” quanto um dia se mostrou, mas há um aspecto pelo qual ela é simplesmente apaixonada: a produção local e, como consequência, a gastronomia. “Penso que na França há duas palavras-chave que estão conectadas e explicam muito da qualidade: ‘terroir’ (‘da terra’, que pode ser traduzida como vocação do terreno ou da região) e ‘savoir- faire’ (‘saber fazer’, que pode ser traduzido como a arte do bem fazer).” Ainda que seja um país pequeno – menor que todo o território do Rio Grande do Sul –, a França apresenta uma diversidade regional muito bem marcada. Segundo a professora, cada pequena região produz seu tipo especial de vinho, de queijo e pratos tradicionais.
Os franceses também costumam valorizar a produção local e fresca, ou seja, da estação. Tanto que chefes de cozinha prezam em ter os produtores como fornecedores diretos de seus restaurantes. “Ano passado, visitamos o restaurante de um jovem chef na região da Picardia, que não só estabelece esse vínculo com os produtores como acrescenta seus nomes nos pratos que prepara, como forma de homenagem e para que os clientes saibam da origem local dos produtos.”
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É com base nessas características que o vínculo dos franceses com a mesa vai além da “gourmetização” ou do ato de comer bem. Na visão de Bia, trata-se de um traço cultural que se reflete na convivialidade, na relação produtor-consumidor e na presença de mercados públicos que vendem alimentos frescos em praticamente todos os bairros de Paris. “Aliás, registre-se que a cidade é pioneira na agricultura urbana e, através do programa ‘parisculteur’, está transformando telhados em hortas, pomares e até colmeias (e já há restaurantes sendo abastecidos com esta produção urbana)”, acrescenta. Diante disso tudo, fica até difícil escolher um prato preferido. Mas com Bia, não tem muita frescura, não. Desde que esteja acompanhada de um bom (não necessariamente caro) vinho da Borgonha, está de bom grado. Santé! (Saúde).