A casa, o ambiente familiar e a rotina doméstica são temas recorrentes na obra da escritora santa-cruzense Lya Luft. Já em seus consagrados romances, como As parceiras, Reunião de família e A sentinela, ou ainda no tom ensaístico e poético de Secreta mirada, Perdas e ganhos e Mar de dentro, entre outros, volta-se justamente a esses espaços tão íntimos, que, não por acaso, cativam o leitor, o conquistam e o convencem porque, ativando a memória, são também os dele, são de cada um.
Pois, ainda que tenha visitado esse imaginário coletivo (ao qual, no entanto, imprime sua vivência tão plena e pessoal) em tantos livros anteriores, talvez nunca o tenha feito com tamanha intensidade e ternura quanto no novo livro, recém-chegado às livrarias. A casa inventada é a síntese das casas que Lya certamente traz na memória, mas é também a casa que cada um de nós tem presente em seus devaneios. Como tal, é o espaço de afeto, de amor e de paixão que habitamos, e que nos habita.
É o escrutínio de uma grande escritora, de uma pensadora, com a marca da experiência de quem completará 80 anos em 15 de setembro do ano que vem. E é um volume que reafirma, em todas as dimensões e com peculiaridades, a marca estilística consagrada de Lya. É em certa medida ficção, porque o tom não é confessional ou autobiográfico: a autora reserva-se o direito de empreender voos poéticos. Mergulha nos recônditos de seu coração e de sua alma para ali identificar, como menciona num dos poemas que abrem as seções, “a retidão e certa melancolia”, mas também “a alegria”.
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São essas inclusive as linhas salientes nos textos. Uma escritora de ascendência germânica, que tem nos pais os ideais de conduta e deles herdou princípios e esses fios que, como percebe, tramam sua vida, sua história presente. Viver é estar cercado de mistérios, e para essa personagem a escrita afigura-se tentativa de prospectar possíveis respostas ou, se não encontrar estas, ao menos seguir tateando com confiança. A casa inventada denota a serenidade e a amplitude do olhar de mundo de Lya, a partir do elevado ponto de vista a que chegou em sua caminhada.
E, no entanto, nesse espaço de plenitude, às vésperas dos 80 anos, ela foi surpreendida pelo destino (esse mistério) com a perda de um dos filhos, no início de novembro. André, o do meio (é mãe também de Susana e Eduardo, os três de seu casamento com o linguista Celso Pedro Luft), morreu no início do mês, aos 51 anos, em decorrência de parada cardiorrespiratória enquanto surfava no litoral catarinense. O baque ocorreu em meio ao contexto de lançamento do novo livro, no qual André (bem como Susana e Eduardo) era mencionado em epígrafe e tinha passagens da infância mencionadas.
A profundidade e o alcance das reflexões de Lya podem ser medidos inclusive pela interlocução com a condição humana em geral. No poema anteriormente mencionado, em um dos versos, quando refere a morte, ela salienta: “ninguém sabe quando e onde”. Adiante, arremata traduzindo o que cabe a cada um, em sua vida, cumprir: há que buscar o que ela esconde.
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Mas, como Lya percebe e compreendeu, ao longo de sua caminhada, digna de todos os respeitos e de toda a admiração (de leitores e da sociedade em geral, por sua autenticidade), ao final desse mesmo poema, entre parênteses, vaticina: dissabores fazem parte, porque ao ser humano ao que tudo indica não é dado ter acesso à chave dos mistérios. Cabe a ele alimentar centelhas de luz, para iluminar, dentro de si e dos outros, os cantinhos bons, honestos, justos. Afinal, como propõe, maior é a celebração da vida. A Lya, ao nos ajudar a arejar nossa casa, que somos nós próprios, devemos essa valiosa ajuda, para celebrarmos melhor a vida.
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