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Por que persiste o racismo estrutural

Pare agora o que estiver fazendo e olhe para os lados. Se estiver sozinho, tente apenas lembrar. Quantos negros trabalham com você? Quantos deles ocupam cargos de chefia? Se você faz faculdade, pense em quantos colegas e professores negros você têm. O número encontrado provavelmente cabe em uma mão. E isso tem um motivo: somos um país estruturalmente racista. O racismo estrutural é um termo usado para definir as sociedades baseadas na discriminação que privilegia algumas etnias em detrimento das outras. No caso do Brasil, segundo o doutor em História Mateus Skolaude, os privilégios da população branca sobre os negros são fruto de 400 anos de escravidão, em um país que tem oficialmente 519 anos de existência – ou seja, em 80% da nossa história, a população negra foi subjugada e marginalizada.

Embora a escravidão tenha chegado ao fim em 1888, o racismo permaneceu nos espaços sociais, culturais, políticos e educacionais. “O Joaquim Nabuco tem uma frase famosa, com a qual eu concordo muito, de que a escravidão permanecerá por muito tempo como uma marca do Brasil”, ressalta Skolaude. Uma das provas desse processo histórico é o contraste entre o perfil da população e a representatividade no Congresso Nacional: enquanto 55,9% dos brasileiros são negros ou pardos, 75,6% dos deputados federais e 71,1% dos deputados estaduais eleitos em 2018 são brancos. “Não tem como a gente não perceber que as estruturas históricas legitimaram no presente uma estrutura extremamente racista. Espaços como o da universidade eram até bem pouco tempo constituídos de pessoas brancas. Nos altos cargos, no poder público, a gente não vai enxergar a população negra. Nós vamos enxergá-la em espaços subalternos, nos trabalhos mais insalubres e com menor remuneração. Muitas vezes não se trata da competência da pessoa, mas sobretudo da dimensão racista da nossa sociedade.” Confira na reportagem a seguir algumas questões que envolvem o tema.

Expressões racistas estão enraizadas no nosso vocabulário
Serviço de preto. Pé na cozinha. Cabelo ruim. Lista negra. Por mais que possam ser usadas sem uma intenção racista, diversas expressões utilizadas no nosso dia a dia surgiram em um contexto de discriminação e acabaram se fixando no vocabulário. O fato de ainda estarem em uso, e de forma tão enraizada que quem as fala nem percebe sua conotação, é mais uma prova de que o racismo é um problema arraigado na nossa cultura. O sociólogo e membro da equipe de coordenação do Grupo de Trabalho pela Promoção da Comunidade Negra em Santa Cruz do Sul (GT-Afro), Iuri João Azeredo, afirma que em muitas expressões, como “denegrir” ou “a coisa está preta”, há uma associação do que é escuro, preto, negro, com algo ruim, que é mau e precisa ser evitado. “Lembro na minha infância do uso comum da palavra ‘negrice’, que queria dizer ‘coisa de negro’, para designar enfeites, decorações e vestimentas consideradas feias, exageradamente coloridas e com detalhes absurdos, referindo-se a uma estética tida como bizarra, repulsiva e jocosa”, comenta. De acordo com Azeredo, o uso desses termos e palavras contribui para a estruturação do racismo, pois associam a população negra com algo negativo.

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É fake: ao contrário das expressões citadas acima, que de fato têm conotação racista, o termo Black Friday não tem. Um boato sobre o nome da sexta-feira de liquidações, que tem origem nos Estados Unidos, voltou a circular ao longo da semana, afirmando que a denominação era usada para marcar o dia em que os escravos eram vendidos a preços mais baixos. No entanto, os registros mostram que o termo só começou a ser empregado nos EUA em 1951, quase um século após o fim da escravidão no país. Sobre a origem real da expressão, há duas versões divulgadas até hoje: em 2013, o site Snopes mostrou que nos anos 1950 a “sexta-feira negra” descrevia a onda de faltas de trabalhadores que inventavam doenças para emendar o feriado de Ação de Graças (na quinta) com o sábado e o domingo. A outra explicação, descrita pelo repórter Joseph P. Barrett, do Philadelphia Bulletin, em um artigo de 1994, é de que o termo era usado por policiais para descrever o caos que acontecia nas ruas da cidade após o dia de Ação de Graças – como muitas pessoas saem de casa para fazer compras, os agentes lidavam com um trânsito caótico e algumas confusões. 

Não é brincadeira, é crime
Embora desde 1989 o racismo seja considerado crime inafiançável e imprescritível, diariamente nos deparamos com declarações racistas feitas por pessoas das mais diversas esferas sociais. O privilégio branco que ainda impera parece encorajar, inclusive, que legisladores façam declarações preconceituosas sem temer qualquer consequência, como aconteceu nessa terça-feira, no Paraná. Durante uma palestra para estudantes de Direito, o procurador Ricardo Albuquerque foi filmado afirmando que a escravidão no Brasil aconteceu “porque índio não gosta de trabalhar” e que “não há dívida com negros trazidos da África e seus descendentes”. Chocante, a fala do procurador repercutiu nas redes sociais, mas as criticas a ela foram citadas por muitas pessoas como “mimimi”. Para o sociólogo Iuri Azeredo, esse tipo de opinião ignora estudos e dados estatísticos. “Taxar de ‘mimimi’ algo tão sério é ignorância ou má-fé. O racismo é algo concreto que prejudica a todos, não só os negros”, salienta.

Preconceito que também afeta a saúde
Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), apresentada na semana passada em um seminário de formação em Santa Cruz do Sul e repercutida na Gazeta do Sul, mostrou que o racismo é uma das causas de elevação do índice de doenças e morbidade entre negros no Rio Grande do Sul. Conforme a pesquisadora Jéssyca da Rosa Santos, crendices carregadas de preconceito são fatores que ainda interferem na criação de mecanismos para o tratamento dessa população. “Acredita-se que as mulheres negras toleram mais a dor, que são boas parideiras. Por conta disso, existem registros até de diferenciação na dosagem de anestesia, durante os partos”, revelou Jéssyca.

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Futebol é prova: centenas de jogadores, apenas dois técnicos negros
Os estádios de futebol têm sido palco de diversos episódios racistas nos últimos anos. Um dos primeiros casos a repercutir mundialmente aconteceu em 2014, quando uma torcedora do Grêmio foi flagrada pelas câmeras de televisão xingando o goleiro Aranha, do Santos, de “Macaco”. Além das ofensas diretas, proferidas nas arquibancadas dos jogos, outro fator relacionado ao racismo chama a atenção no contexto futebolístico, e foi exposto recentemente pelo técnico gaúcho Roger Machado: embora centenas de jogadores sejam negros, existem apenas dois técnicos de futebol negros na série A.

No dia 12 de outubro, Machado, que treina o Bahia, e Marcão, técnico do Fluminense, comandaram uma campanha contra o racismo durante uma partida entre os clubes. Depois do jogo, Roger falou sobre o assunto e denunciou o que definiu como racismo estrutural. “A gente precisa falar sobre isso. Negar e silenciar é confirmar o racismo. Minha posição como negro na elite do futebol é para confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria. Eu sinto que há racismo quando eu vou no restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro. Isso é a prova para mim”, afirmou.

Para o doutor em História Mateus Skolaude, o futebol é um espaço social interessante para se debater essas questões. “Por que temos uma quantidade significativa de negros que são excelentes atletas, que têm um grande destaque, mas não conseguem ascender num segundo momento da carreira como técnicos de futebol? Isso demonstra categoricamente uma dimensão do racismo estrutural, porque quando tem que ascender, comandar e existe um aspecto intelectual, o negro não é reconhecido”, comenta. De acordo com ele, os negros são historicamentes valorizados pela questão do corpo, da estética e da maleabilidade, mas são negados nas dimensões intelectuais e em posições de chefia. “E isso pode ser transportado para outros espaços, inclusive para o mercado de trabalho e universidades”, completa.

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Dívida histórica existe e precisa ser paga
Sempre que o tema do racismo é trazido à tona, uma série de frases prontas é disparada por aqueles que negam sua existência. Uma das máximas proferidas é de que se queremos igualdade, precisamos tratar todos de forma igual, excluindo questões como as cotas raciais e o Dia da Consciência Negra (celebrado em 20 de novembro). No entanto, o princípio da isonomia, que inspira políticas públicas como a das cotas, diz que precisamos tratar os iguais como iguais e os diferentes de forma diferenciada. Assim, se é um direito de todos ter acesso à educação, mas os negros não conseguem chegar à universidade porque questões sociais e culturais os marginalizam, é preciso criar uma política diferenciada para que eles possam ocupar esses espaços e tenham os mesmos direitos que os demais. Nesse viés, o objetivo das cotas seria facilitar o acesso dos negros por um período, até que eles conseguissem chegar lá sozinhos, e então a lei poderia deixar de existir.

Trata-se de reparar uma dívida histórica, que começou na escravidão e não foi paga com o seu fim. Conforme Iuri João Azeredo, a abolição de 1888 não implicou em nenhum ressarcimento das gerações exploradas. Ou seja, os negros foram libertos, mas continuaram vítimas de um processo ideológico de desumanização. “Durante quase quatro séculos, pessoas negras se tornaram mercadorias, equivalentes a bois, e assim comercializáveis e ‘exploráveis’ ao bel-prazer de ‘senhores’. Na verdade, negros saíram (da escravidão) aviltados, sem nada, e com a pecha de ‘vagabundos’, depois de gerações fornecendo toda a riqueza do país, inclusive a que subsidiou a colonização com imigrantes europeus aqui em nossa região”, explica. Em Santa Cruz do Sul (e em muitos outros municípios), até os anos 1970, os negros ainda eram proibidos de frequentar certos espaços. Nesse contexto, chegar a uma universidade ou a um bom posto de trabalho tornou-se um desafio para essas pessoas – não por falta de capacidade, mas pelos estigmas sociais que lhes foram impostos.

A importância da representatividade
Um dos caminhos para que a população negra deixe de ocupar os espaços subalternos é a construção de perspectivas. Nesse sentido, a representatividade tem um papel importante. “Por muito tempo os negros apareceram nas novelas como chofer, empregada, assassino, traficante. Precisamos construir espaços onde eles possam se enxergar também como médicos, engenheiros, professores, e que as crianças vejam famílias negras adquirindo a casa própria, indo viajar, sendo felizes. Isso é fundamental para que se enxergue nessas figuras um espaço de horizonte profissional e possibilidade de afirmação, especialmente para os jovens”, observa o historiador Mateus Skolaude. A publicitária , pesquisadora em Cultura da Mídia e militante do movimento negro, Cíntia Luz, reforça a questão. “A população negra não come manteiga? A gente não compra carro? Não usa tênis? Então por que não aparecemos nos comerciais? A m´ídia invibiliza o negro nesses cenários e o estigmatiza como quem não tem dinheiro nem pra comprar sequer uma margarina. É nessa violência silenciosa e diária que a gente vai sofrendo. Estamos saindo do patamar de discutir coisas específicas para trazer a esse contexto geral, porque o racismo é geral e estrutural. Precisamos olhar pro lado e perceber que o racismo está aqui do nosso lado.”

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“Toda vez que a gente avança, nos param”
Para a publicitária Cíntia, falar sobre o preconceito diário e estrutural é ainda mais importante do que repercutir os casos isolados de ofensas individuais contra pessoas negras. “Falar desses atos isolados é importante, mas não podemos esquecer do resto, que é o racismo estrutural e institucional. Eu continuo sendo a única negra na sala de aula. Dentro das redações de jornais, quantas mulheres negras tem? Quantas pessoas em cargos de confiança e chefia? Eu sinto isso há mais de 40 anos. Está no nosso imaginário coletivo que cada um tem sua posição e que a do negro é a base da pirâmide, exercendo funções subalternas, sendo vítima de violência, enquanto os brancos ficam com os benefícios dessa estrutura racial sobre a qual o Brasil foi fundamentado”, afirma.

De acordo com Cíntia, a mulher é quem mais sente os efeitos do racismo. “A mulher negra que perde o marido para a violência, que vira mãe solteira e vai ter que bancar toda a estrutura familiar”, ressalta. Embora considere que existiram avanços nas últimas décadas, ela afirma que os negros ainda não conseguiram deixar o status da subalternidade. “Tivemos alguns avanços, mas quando a gente consegue avançar, tem um retalhamento muito grande que faz com que as políticas públicas estacionem. A gente não consegue dar passos largos porque cada vez que damos um passo para a frente, nos param e nós voltamos a progredir depois de dez anos.” Além do debate, a publicitária entende que negros e brancos precisam se posicionar e refletir sobre as suas contribuições para a manutenção do racismo. “Mesmo aquelas pessoas que dizem ter amigos negros e convivem em paz com a população negra, elas precisam pensar de que forma contribuem para a manutenção dessa situação no Brasil. Tem uma frase famosa da Angela Davis, que diz: não adianta você não ser racista, tem que ser antirracista. Não adianta dizer que é amigo do negro: se você vê alguém sendo racista, tem que falar para aquela pessoa que ela foi racista. Esse é o caminho.”

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