Quando a TV Globo suspendeu as gravações das novelas na segunda quinzena de março, por causa da pandemia do novo coronavírus, a solução encontrada foi exibir novas edições de antigos sucessos – Fina Estampa, Totalmente Demais e Novo Mundo foram as recrutadas. A situação poderia ameaçar a audiência de um dos principais produtos da Globo.
Porém, a emissora não apenas manteve o interesse nos folhetins como também registrou aumentos de audiência. Mas por que, diante de tantas possibilidades de entretenimento, como lives de música e conteúdo de streaming aquecido, as pessoas ainda param para ver a novela?
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A antropóloga Lígia Kras, que pesquisa comportamento e cultura, avalia ser um erro ignorar a diversidade do povo de um país tão grande como o Brasil, com diferenças culturais e econômicas, no qual nem todos têm acesso às mesmas tecnologias. “Há uma tendência em não se conhecer a realidade da vida das pessoas e nivelá-las pelo comportamento das grandes metrópoles. A vida não é só Netflix e seriados ‘cabeção'”, disse.
Em comum nos folhetins que a emissora escolheu para as reprises, está a história de superação dos personagens. Fina Estampa (2011), por exemplo, de Aguinaldo Silva, tem como destaque Griselda (Lília Cabral), uma mulher forte que luta para criar os três filhos depois que o marido a abandonou. Em um golpe do destino, ela ganha na loteria e muda de vida, para desespero da esnobe Teresa Cristina (Christiane Torloni), que não a aceita como nova vizinha em um luxuoso condomínio. A grã-fina tem como fiel escudeiro Crô Valério (Marcelo Serrado).
A nova edição teve média de 32 pontos de audiência nos 32 primeiros capítulos, crescimento de quatro pontos na comparação com o mesmo período de 2019. A novela anterior, Amor de Mãe, teve média de 30,46 pontos de audiência entre novembro e março, com pico de 36,73 já durante a quarentena.
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Lígia acredita que os telespectadores das telenovelas se espelham em personagens como Griselda que, guardadas as proporções, também viveu uma pandemia particular ao enfrentar a dureza da vida. “A novela traz aquilo que muitos de nós estamos sempre esperando: uma expectativa para uma resposta, uma revelação surpreendente (e positiva, muitas vezes), um desfecho para algo que não aguentamos mais esperar por um final feliz.”
Para o crítico e roteirista Raphael Scire, um dos apresentadores do podcast Isso Só Acontece em Novela, que tem transmissão semanal no site do Museu da Imagem e do Som (MIS), a explicação é mais objetiva: “O fato de haver mais pessoas em casa por conta do isolamento, sem dúvida, é um dos fatores (para a boa audiência)”. Scire diz que, muitas vezes, a novela é vista até por inércia. “Basta sentar e assistir”, declarou.
“É verdade que, por causa da quarentena, tem mais gente em casa. Mas essas pessoas a mais também escolheram ver nossas novelas. O que mostra que nossas escolhas foram acertadas”, aponta Amauri Soares, diretor da TV Globo. “A telenovela é um hábito, uma tradição, uma paixão dos brasileiros.”
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Para a pedagoga e psicanalista Terê Inácioh, as escolhas da emissora foram assertivas para o período que o País vive. Os telejornais trazem notícias duras sobre a pandemia; as novelas, o alívio. “É uma provocação do inconsciente coletivo de que tudo vai ser superado, de que o ser humano tem a capacidade de superar.”
Além disso, ela aponta a simbologia que tem o ato da família se reunir para ver a novela. “É uma forma de socialização, uma busca afetiva. Mesmo que um, ou mais membros, não goste da história, está lá, sentado na sala, para ficar junto dos demais.”
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O autor de Fina Estampa, Aguinaldo Silva, acredita que seja justamente o estilo “novelão” de sua obra que manteve o interesse do público na história, nove anos depois de ter ido ao ar. “O que os telespectadores querem – as audiências comprovam – não são novelas que não parecem novelas, mas, sim, novelões, ou seja: aquelas que seguem fielmente as regras estritas do melodrama. Nesse sentido, Fina Estampa é, sim, uma novela que vai mexer com os sentimentos do telespectador sempre que for exibida, não importa a época”, disse.
Memória afetiva
Quando a pandemia atingiu o País, a novela que estava no ar no Vale a Pena Ver de Novo, faixa permanente de reprises da emissora, era Avenida Brasil (2012), sucesso de João Emanuel Carneiro.
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Êta Mundo Bom!, escrita por Walcyr Carrasco em 2016, veio substituí-la – e teve a melhor primeira semana do horário em 16 anos. “O lema do personagem principal (Candinho, interpretado por Sérgio Guizé) é ‘tudo o que acontece de ruim na vida da gente, é para melhorar’. É evolucionista. Não importa se é bom ou ruim, vamos evoluir”, disse Terê Inácioh.
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No Viva, que reúne antigos sucessos da TV Globo, O Clone, Brega & Chique e Chocolate com Pimenta estão no ar. O canal alcançou, em números consolidados, o primeiro lugar de audiência entre os canais por assinatura entre 1º janeiro e 8 de abril deste ano, de acordo com o Kantar Ibope Media (o canal perde a liderança para o Globo News se for considerado o período de quarentena). Esse resultado foi fortemente impulsionado pelas novelas.
Durante o período de isolamento, o Viva teve um ganho de 7% no acumulado das três novelas no horário noturno. Brega & Chique, de Cassiano Gabus Mendes, bateu recorde histórico de audiência entre as estreias do mesmo horário (0h45). Exibida em 1987, a comédia, que tem um quarteto de protagonistas formados por Marília Pêra, Glória Menezes, Raul Cortez e Marco Nanini, estreou em 19 de janeiro.
Para a psicanalista Terê Inácioh, as reprises do Viva fisgam o público porque trazem elementos que as novelas atuais não têm mais: inocência e ausência da violência. “Chocolate com Pimenta, por exemplo, é o Brasil mais interiorano, do namoro na praça, do romance suave.”
Soma-se a isso o fato de as produções mais antigas se tornarem um ponto de referência na vida dos brasileiros. “Não é uma nostalgia, é um recordatório de algo que a pessoa viveu, seja bom ou ruim, mas que passou. E que remete a uma liberdade que, no momento, não é possível ser vivida.”
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