Por que algumas vidas não importam?

Participei de três Seminários Brasileiros de Jornalismo, no Rio de Janeiro, no início dos anos 2000. A cada edição, ao longo de uma semana, diretores de redação, editores dos principais jornais e revistas e do telejornalismo brasileiro se revezavam para compartilhar com uma restrita plateia a sua forma de dirigir uma redação, de estabelecer relações com o público que consome informação e passar suas impressões sobre o cenário da mídia de uma forma geral.

O leitor deve estar se perguntando: o que tenho a ver com isso? Já explico.

Dentre vários ícones do jornalismo brasileiro que se sucederam nas exposições e repassaram ensinamentos preciosos que levei para a vida profissional, ocupou o microfone, em um dos eventos, a diretora de telejornalismo da empresa líder do segmento no País.

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Dias antes havia ocorrido uma enxurrada em Santa Cruz do Sul. Uma equipe da emissora estava de passagem pelo município e aproveitou para fazer imagens. O arroio que atravessa a Avenida Castelo Branco, no Distrito Industrial, tinha transbordado e a cena, realmente, era impactante. Mas sem maiores consequências. Nem para moradores, nem para empresas ali instaladas.

As imagens foram editadas e transmitidas em rede nacional, nos principais telejornais da emissora, em tom de tragédia. Algo como: “Um rio que passa pelo centro da cidade de Santa Cruz do Sul, no interior do Rio Grande do Sul, transbordou e deixou um rastro de prejuízos. E blá blá blá…”

Ao final da exposição, fiz referência àquela notícia equivocada. Questionei sobre normas de apuração dos fatos, critérios de edição, argumentando que não passa rio no centro de Santa Cruz do Sul. E que não houve tragédia, nem destruição. A palestrante foi enfática: “Para nós, o que importa é uma boa imagem. A narrativa a gente constrói”.

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É claro que, independente de plataforma de comunicação, existem profissionais e empresas sérias e responsáveis. Outras nem tanto. Pense nisso quando estiver à frente de alguma tela. Nem sempre boas imagens refletem fatos reais.

Lembrei deste episódio não por acaso. Mas porque, provavelmente como você, leitor, estou intrigado: por que a tragédia na escola infantil de Saudades, em Santa Catarina, na primeira semana de maio, onde um jovem assassinou brutal e covardemente três crianças, uma professora e uma agente de saúde, não causou qualquer comoção nos telejornais?

Pelo menos não na emissora que por um mês repetiu, à exaustão, cenas de um brutal assassinato no estacionamento de um supermercado em Porto Alegre. Porque faltaram imagens impactantes ou porque o cliente que dividiu socos com os seguranças antes da barbárie era mais indefeso do que os bebês de Saudades e das servidoras que saíram em socorro das crianças?

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Também pode ser que as vítimas daquela creche, anônimas para os padrões da emissora, não se enquadrassem no perfil que ela definiu para comover o público e idolatrar (pseudo) celebridades.

O fato é que essa atrocidade, que degolou bebês e professoras e destroçou famílias sem nenhuma justificativa, foi impiedosamente arquivada como insignificante por quem se pauta por imagens que causem impacto e não por compromisso com fatos reais e critérios jornalísticos.

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