O ideal seria que conteúdos como este não precisassem mais ser escritos. No entanto, pautas como essas ainda são necessárias nos dias atuais e ganham mais destaque no mês da Consciência Negra. A data – 20 de novembro – reforça a conscientização quanto ao racismo estrutural persistente no Brasil e no mundo, e que ainda faz com que negros sejam desfavorecidos nas mais diversas categorias. Tente lembrar quantas pessoas negras trabalham com você ou quantas delas ocupam cargos de chefia. Se você teve acesso ao ensino superior, tente lembrar quantos professores ou alunos negros já passaram pela sua classe.
Segundo o IBGE, 56% da população brasileira é constituída por negros e pardos. Ainda assim, a impossibilidade de ascensão profissional é notória e a ausência dessas pessoas em posições de destaque é contraditória se comparada ao número de afrodescendentes. Então, onde elas estão?
A pesquisadora Camila Francisca da Rosa, professora, graduada em História e doutoranda em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), explica que o racismo estrutural no Brasil, somado à histórica característica de democracia racial, faz com que a sociedade não se reconheça como racista. “As pessoas têm receio em falar sobre o tema ou, simplesmente, negam a sua existência. Quando se trata de racismo estrutural, precisamos direcionar o olhar para as relações sociais como a política, as questões econômicas, jurídicas, de saúde e educacionais. Dessa forma, percebemos como as instituições são construídas e, em consequência, como nós também somos afetados e reproduzimos práticas racistas no cotidiano.”
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Segundo o IBGE, negros ainda são minoria nos cargos de chefia – as funções de gerência são ocupadas por pessoas brancas em quase 70% dos casos. Também são mais vulneráveis à violência. A taxa de homicídios de negros ou pardos é quase três vezes maior que a de brancos. São 43 mortes a cada 100 mil habitantes na população negra, e 15 mortes para cada 100 mil habitantes na população branca.
É hora desse debate
A pesquisadora Camila da Rosa, integrante da ONG Alphorria, de Venâncio Aires, destaca a importância de intensificar, no mês da Consciência Negra, o discurso antirracista e o trabalho de grupos, movimentos sociais e culturais, além das pesquisas acadêmicas. Para ela, trata-se de reivindicar a história, a cultura e as experiências da negritude em Santa Cruz do Sul, para que sejam mensuradas, pensadas e ocupem as pautas do debate público, político e educacional.
Camila lembra que a região Sul foi maciçamente povoada por imigrantes vindos da Europa. No caso de Santa Cruz do Sul, particularmente, pelos alemães a partir de 1849. Ela explica que, embora os imigrantes fossem proibidos de ter escravos, pesquisas sobre escravidão em locais de colonização alemã e italiana apontam para a presença de escravizados.
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Ainda segundo Camila, quando Santa Cruz elege o germanismo como identidade, exclui outros grupos na sua formação e, logo, na sua estrutura. “Isso vai repercutir na construção do histórico da cidade, na escolha dos símbolos oficiais, na organização da espacialidade. É uma narrativa que colabora para a manutenção de espaços muito bem estabelecidos entre brancos e não brancos, e que é um espaço desigual”, ressalta.
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Falta de pertencimento
Marta Nunes nasceu na zona periférica de Santa Cruz do Sul, no Bairro Bom Jesus. Negra, é formada em Química Industrial pela Unisc e pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A busca por conhecimento levou-a ao mestrado na UFSM e ao doutorado em Química Orgânica na Universidade de São Paulo, e a dois pós-doutorados, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Universidade da Califórnia, em Davis.
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Militante e engajada nas causas raciais, Marta, que é docente universitária há quase 15 anos e hoje professora adjunta da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), afirma que as pessoas estão acostumadas a pensar no racismo como injúria racial ou agressões motivadas pela cor. “Hoje em dia se discute cada vez mais a questão do racismo estrutural, o que é extremamente importante para entender como a racialização da nossa sociedade e como quase 350 anos de escravidão no Brasil nos fizeram chegar aos dias de hoje, quando a maior parte da população negra se encontra nos piores índices socioeconômicos e educativos”, comenta.
O mundo é protagonizado por pessoas brancas e isso ocorre desde a infância. Há poucas bonecas e brinquedos voltados à cultura negra, e praticamente não existem desenhos animados estrelados por personagens negros. As crianças que viveram a infância na década de 1990, ou um pouco antes, cresceram idealizando imagens representadas por Xuxa e Angélica. Não havia referência de moda ou de como cuidar dos cabelos, tampouco maquiagem para peles negras.
Algumas mudanças, é claro, estão acontecendo. “Ainda não vemos negras e negros ocupando espaços de destaque na mesma proporção em que estão na sociedade brasileira, mas já é possível nos ver e nos ler em vários locais: livros, filmes, artigos, palestras e indivíduos”, afirma.
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No entanto, o processo de representatividade ainda é longo. “Eu nasci e cresci em uma cidade com um hino explicitamente racista e padrões inalcançáveis para qualquer indivíduo branco, imagina para negras e negros. O fenômeno da invisibilização histórica sempre esteve combinado com tratamentos desqualificantes, referências pejorativas ou explicitamente racistas”, salienta a pós-doutoranda.
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Ela ressalta que, embora Santa Cruz do Sul seja conhecida como um polo da cultura germânica, conta com várias personalidades negras que se destacam, ou por seus cargos, ou por suas trajetórias. A Gazeta do Sul elencou alguns exemplos. Confira.
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Thaís Silveira
Jornalista, especialista em História e Cultura Afro-brasileira, mestranda em Ciências Sociais, Thaís Silveira nasceu e cresceu em Santa Cruz do Sul. Os pais faziam parte da Sociedade Beneficente União, e o vínculo com o ambiente foi importante para que entendesse a sua identidade como mulher negra de Santa Cruz do Sul.
Após um episódio de racismo na cidade, Thaís se mudou para Porto Alegre. Trabalhou em uma emissora de TV e desde 2013 atua em projetos de consultoria e assessoria, ministra palestras e organiza eventos voltados para o empoderamento da mulher negra. Em 2017 fundou a Revista Pretas. Atuou como professora no MBA em Diversidade nas Organizações e Desenvolvimento de Práticas Inclusivas, da Universidade La Salle, em Canoas. Em viagem à África do Sul, Thaís ampliou o conhecimento sobre sua ancestralidade. Atualmente é mestranda em Ciências Sociais, com área de concentração em políticas e práticas sociais pela Universidade do Vale do Sinos.
Marta Nunes
Professora há quase 15 anos, Marta Nunes atualmente leciona na Uergs. Tem duas graduações em Química, pela Unisc (bacharel) e pela UFSM (licenciatura). Cursou mestrado (UFSM) e doutorado (USP) em Química Orgânica e tem um pós-doutorado na Ufrgs e outro na Universidade da Califórnia. Trabalhou em diversos segmentos desde que era adolescente: diarista, auxiliar de produção, técnica de laboratório, técnica de nível superior na Prefeitura de Santa Maria e consultora para um órgão da ONU. Como professora, lecionou na UCS e Unicruz.
“Durante boa parte da infância me perguntei por que, eu sendo negra, havia nascido em um município que se reafirma o tempo todo como ‘europeu’. Todos aqueles indivíduos que não fossem de origem alemã eram considerados os outros, chamados de ‘brasileiros’, caso fossem brancos, ou de Schwartz (preto em alemão), de forma cruel e pejorativa. Com referenciais de tudo que é bom e belo absurdamente distantes de mim, cresci acreditando que não era bonita, que não era inteligente e que eu passaria o resto da minha vida servindo aos privilegiados”, afirma.
Rodrigo de Almeida
Agente da cultura urbana, o santa-cruzense Rodrigo de Almeida, de 31 anos, empreendedor social negro independente, trabalha com grafitti há mais de dez anos. Como artista plástico, descobriu-se ainda criança, por meio da paixão pelo desenho.
Digo, como é popularmente conhecido, foi aluno do Curso de Artes Plásticas da Unisc – Uniarte, em 2008 e 2009. Deu continuidade aos estudos fazendo aulas no Ateliê da Eliana Baumhardt, no Espaço Camarim, nos anos de 2011 e 2012. Nascido no Bairro Senai, o artista dança desde os 10 anos. Em sua trajetória, passou também pela dança de salão, até encontrar seu caminho no popping.
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Em 2014 foi o representante do Brasil na França, na modalidade popping, em um dos maiores eventos de danças urbanas do mundo, o Juste Debout. Atualmente desenvolve trabalhos como arte-educador por meio da Secretaria Municipal de Políticas Públicas, oficinas de dança e consciência da cultura Hip Hop. Além disso, Digo é fundador do Ateliê Vivências Urbanas (AVU), um espaço físico e cultural de dialéticas periféricas e negras, criado por ele para servir de refúgio, aquilombamento e incubadora social para jovens de periferia que buscam independência social, pertencimento e expressão, por meio da arte e da cultura Hip Hop.
Paulo Soares do Nascimento
Recentemente aposentado, o tenente-coronel Paulo Fernando Soares do Nascimento, de 56 anos, atuou na Brigada Militar por 35 anos. Nascido em Porto Alegre, é um dos quatro filhos de Gentil e Alice do Nascimento. Ele conta que o pai foi a inspiração para os estudos. “Seguindo as instruções de meu pai, que era servente de obras, me dediquei a estudar, justamente para não ser mais uma pessoa buscando o seu espaço por meio de serviço braçal. Foi isso que me motivou. Estudei e consegui alcançar os meus objetivos”, conta.
Nascimento entrou primeiramente para o Exército e depois ingressou na Brigada, em 1985, como aluno soldado. Foi declarado aspirante em 1994. Em 97 passou a comandar o pelotão de Arroio do Tigre, onde ficou por dez anos. Ao longo da carreira, esteve à fente dos três batalhões que compõem o Comando Regional de Polícia Ostensiva (CRPO) do Vale do Rio Pardo, em Cachoeira do Sul, Santa Cruz do Sul e Rio Pardo. Em 2011 foi promovido a major. O último cargo ocupado pelo tenente-coronel Nascimento, antes de se aposentar, foi o de chefe do estado-maior no CRPO.
Lair Ipê da Silva
O santa-cruzense Lair Ipê da Silva, de 67 anos, o Laia do Banrisul, como é carinhosamente conhecido, não tem certeza, mas acredita ter sido o único gerente bancário negro da história de Santa Cruz. Laia estudou na Escola Municipal Bruno Agnes até a 4a série e depois foi para o Colégio Marista São Luís. Conta que não sabe como o pai conseguiu matriculá-lo em escola particular. De acordo com ele, o colégio foi o responsável pelo emprego de muitos anos no Banco do Estado Rio Grande do Sul.
“O Banrisul, quando precisava de alguém, pedia indicações de pessoas que haviam se destacado de alguma forma no Marista”, conta. Laia concluiu o curso superior de Ciências Contábeis e pós-graduação em Controladoria. Foi o primeiro presidente negro do Diretório Acadêmico da Faculdade de Ciências Contábeis de Santa Cruz do Sul (Faccosul). Sua trajetória foi marcada por muito carisma e engajamento com música, esporte, atividades religiosas, além da participação ativa nos clubes sociais da cidade. Sempre que pode, Laia visita o filho Lair Ipê da Silva Júnior, que mora em Nova York e trabalha na Ipan Technology, locada dentro da Google.
Resquícios da escravidão: a hipersexualização da mulher negra
A imigração de alemães e italianos para o Sul do Brasil alimenta até hoje a imagem de um Rio Grande do Sul com ar europeu, com pessoas de determinadas características predominantes, como pele branca, cabelos claros, olhos azuis ou verdes. Santa Cruz do Sul é um dos principais núcleos da colonização alemã no Estado. No entanto, com o passar dos anos, a chegada de diferentes etnia e culturas fez com que a cidade passasse por transformações e se tornasse um lugar miscigenado.
Os traços da predominância antiga, contudo, ainda marcam a vida de diversas pessoas que lutam por igualdade dentro do município. As mulheres negras, por exemplo, com o surgimento de grupos, associações e movimentos sociais de apoio e conscientização, têm se posicionado cada vez mais na luta por direitos, espaço, reconhecimento, valorização e contra o racismo.
A luta contra o racismo de forma ampla faz parte do cotidiano de Marta Nunes, mas, sobretudo, ela ergue a bandeira da militância pelos direitos das mulheres negras. “Acredito no poder transformador da educação e almejo inspirar as mulheres negras por todo o mundo”, enfatiza. Segundo a pós-doutora, que palestra sobre o tema por todo o Brasil, a cultura escravocrata carrega estereótipos que atingem essas mulheres, as quais acabam sendo associadas ao trabalho braçal e vistas apenas como objetos de desejo masculino. “São construções sociais que precisam ser desfeitas, pois perseguem as afrodescendentes a vida inteira”, explica.
O Brasil viveu mais de 300 anos de regime escravista. Homens, mulheres e crianças eram sequestrados de várias regiões da África e trazidos para cá, a fim de perpetuar o sistema de exploração. As africanas eram violentamente humilhadas, exploradas e tiveram sua sexualidade abusada. Eram forçadas a trabalhar para garantir o conforto das mulheres brancas portuguesas. Conforme explica Marta, as escravizadas também serviam sexualmente ao seu senhor. Consideradas como propriedade, cabia às escravas o uso que fosse conveniente aos senhores de engenho e seus filhos, inclusive o de serem estupradas para satisfazer impulsos sexuais.
De acordo com Marta, a hipersexualização da mulher negra é fruto desse sistema exploratório. Trata-se de uma herança da escravidão somada à herança genética, em virtude das formas físicas avantajadas, como busto e quadril, além dos traços marcantes, como a boca. Ela explica ainda que foi criado um ideal de relacionamento: um modelo ideal do que seria uma mulher para casamento, perfil esse no qual as mulheres negras não se encaixam. “As heranças escravistas deixaram marcas tão densas quanto as marcas de ferro nos seus corpos, que as identificavam com as iniciais dos nomes da família às quais pertenciam”, observa.
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Ascensão que rompe a estrutura
Para a pesquisadora Camila Francisca da Rosa, a ascensão de afrodescendentes na ocupação de espaços diversos exige o rompimento de uma estrutura social racista. “Implica a quebra de padrões, de imagens, de discursos, de práticas e com um ordenamento social de privilégio. Desconstrói estereótipos ainda vinculados ao racismo científico do século 19, que acreditava em raças, biologicamente falando, diferentes e que eram divididas entre superiores e inferiores ou culturalmente entre civilizados e selvagens”, explica.
Camila salienta que representatividade implica a reformulação daquilo que é “natural”. “Uso o simples exemplo das princesas da Disney, que são brancas e loiras, e as crianças negras e brancas entendem que isso é o padrão de beleza.” De acordo com ela, ler uma história com personagens negros, colocar crianças e jovens diante de representatividades negras, vai produzir outras experiências – logo, produz uma relação positiva diante de identidades que são diferentes.
A emergência da temática racial e da luta antirracista, pensando no tempo histórico, é muito recente. Por isso, ainda é tão difícil ter pessoas negras em lugares diversos, ou mesmo em espaços de destaque e liderança. Camila acredita que a sociedade vivencia um processo de luta pelo protagonismo negro, que ora parece ser lento, ora parece regredir, mas está em andamento e já produz efeitos.
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