Projetos de colonização, ao longo do século 19, trouxeram alemães (e, logo adiante, várias outras etnias) de forma mais efetiva para a realidade social, econômica e cultural do Brasil. Mas, ao lado desses imigrantes, outros grupos de profissionais (e não apenas colonos) marcaram presença. É o caso dos soldados: primeiro, após a independência, para constituir a guarda pessoal do imperador; e em meados do século 19, para atuar na guerra contra Rosas.
Quem investigou esse tema é o historiador gaúcho Juvêncio Saldanha Lemos. Santa-cruzenses lembrarão dele: em sua carreira militar, foi comandante do extinto 8o Batalhão de Infantaria Motorizado (8o BIMtz), em 1985 e 1986. Nascido em Porto Alegre, em 24 de janeiro de 1940, aos 83 anos, divide-se entre sua terra natal e Cruz Alta, onde reside, ao lado da esposa Helena, com a qual tem quatro filhas.
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Na área militar, diplomou-se pela Academia Militar das Agulhas Negras, pela Escola de Instrução Especializada, pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Serviu no Batalhão Suez. E foi chefe da 3ª Seção do Comando Militar do Sul; ali, transferiu-se para a reserva, no posto de coronel.
Na área civil, é bacharel em Direito e pós-graduado em Metodologia de Ensino. Como historiador, publicou diversos livros, entre os quais A saga do Prata (uma obra-prima), Os mercenários do imperador, Brummers e A revolta de 1922. É titular da cadeira no 18 da Academia de História Militar Terrestre do Brasil. Em recente passagem por Santa Cruz, na companhia da esposa Helena, concedeu entrevista à
Gazeta do Sul.
Veja vídeo da entrevista:
ENTREVISTA
Gazeta do Sul – A partir de suas pesquisas, que aspectos novos, no seu entender, os alemães trouxeram para a realidade social e econômica do Rio Grande do Sul?
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Bem, as minhas pesquisas limitaram-se aos alemães contratados para virem ao Brasil como soldados. Não me preocupei em aprofundar no que se refere à imigração em geral, ou seja, àqueles que vieram como colonos. Gente mais capacitada que eu tem feito isso.
Portanto, focado nos soldados, eu diria que eles chegaram em uma terra de usos e costumes totalmente diferentes dos de sua terra natal, principalmente no que tange a alimentação.
Após licenciados, implantaram a sua cultura, que era tecnicamente superior, nos pequenos vilarejos onde se instalaram. Que logo floresceram – vide São Leopoldo e Santa Maria. A economia naturalmente foi alavancada, mas isso não foi de uma hora para outra.
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A miscigenação aconteceu, de forma a embaralhar práticas nacionais, mas também foi sem pressa.
Parcela dos germânicos que atuaram como mercenários, logo após a independência do Brasil, vieram na condição de colonos? Ou muitos efetivamente se tornaram, depois, colonos?
Os alemães contratados em 1824 para virem para o Brasil, ou vieram como mercenários (a quase totalidade), ou vieram como colonos (uma minoria). Ou seja, nenhum colono se tornou mercenário aqui no Brasil.
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Ocorreu o seguinte: o governo imperial não queria colonos! Precisava era de soldados, para consolidar a independência (mostrar a Portugal que tinha condições militares para sustentar a ruptura com a metrópole), esmagar os movimentos separatistas que ameaçavam a unidade territorial do novo Império – vide Confederação do Equador – e assegurar a estratégica presença imperial na região platina – uma guerra com a Confederação Argentina já era considerada inevitável.
Soldados, o Império precisava era de soldados, experientes veteranos das campanhas napoleônicas na Europa.
Acontece que a legislação alemã proibiu a contratação de mercenários em seu território. Para driblar essa proibição, o governo brasileiro viu-se forçado a contratar também famílias de colonos alemães, para mascarar o recrutamento. Quer dizer, a cada dez soldados, contratava-se um colono.
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Isso causou problema na chegada ao Brasil. Os soldados foram facilmente encaminhados aos quartéis do Rio de Janeiro. Mas o que fazer com os colonos. Emergencialmente, eles foram despachados para o Sul. E lá, também emergencialmente, os amontoaram na Feitoria do Linho Cânhamo (atual São Leopoldo).
Ou seja, em 1824, mercenário foi uma coisa: colono, outra completamente diversa.
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Esse grupo de soldados teve um papel relevante na Guerra Cisplatina e na defesa das fronteiras brasileiras do extremo sul? Como foi o desempenho deles?
Com os cerca de 2 mil mercenários contratados na Alemanha, o governo brasileiro organizou dois Batalhões de Granadeiros (2º e 3º) e dois Batalhões de Caçadores (27o e 28o). Caçadores são uma infantaria leve, muito móvel.
Os Granadeiros, escolhidos entre os mais altos, ficaram no Rio de Janeiro, encarregados da guarda do Imperador no Palácio de São Cristóvão. Promoveram uma rebelião em 1828 em protesto contra aplicação de castigos físicos (chibatadas), ainda vigorantes no Exército Imperial. Os sobreviventes foram desmobilizados e se espalharam por lá mesmo. Há registro de que muitos subiram a serra, na direção de Nova Friburgo, onde já havia uma colônia suíça, e de que outros seguiram para o Estado do Espírito Santo.
O 28º BC foi despachado para Pernambuco, para acabar com a Confederação do Equador. Fez um bom trabalho…
O 27º BC foi mandado para o Sul, para atuar na Guerra Cisplatina. Portou-se muito bem, com atuação marcante na batalha do Passo do Rosário (Ituzaingó).
Após o Tratado de Paz e a independência da Banda Oriental, o atual Uruguai, qual foi o destino desses mercenários? Muitos se fixaram no território gaúcho?
O 28º BC, que havia feito o diabo lá em Pernambuco, foi trazido para o Sul, mas a guerra contra os platinos já estava praticamente acabada. Portanto, não chegou a entrar em combate. Seus integrantes foram desmobilizados na região de Santa Maria, onde muitos se estabeleceram – Santa Maria chegou a ser considerada uma colônia alemã, por volta de 1830 – e outros se espalharam pelo vale do Rio Jacuí, criando vilas. Evidente a atração que Porto Alegre e São Leopoldo exerciam sobre eles.
O 27º BC, heroico na batalha do Passo do Rosário (20 de setembro de 1827), foi pouco depois levado para Santa Catarina, onde foi dissolvido. Pode-se dizer que foi o fundador da colônia alemã naquele Estado.
De justiça, deve-se registrar que o governo imperial cumpriu rigorosamente as cláusulas contratuais com os mercenários. Ao serem licenciados, podiam optar entre receber glebas de terra, ou dinheiro equivalente, ou passagem de volta para a Alemanha. Poucos, muito poucos dos mercenários contratados em 1824 optaram por retornar à Europa. Na época, por pior que fosse aqui, era melhor do que lá…
Que contribuições mais significativas os alemães que permaneceram deram ao Rio Grande do Sul e ao Brasil?
Eles, com as limitações que se pode imaginar, criaram núcleos populacionais que logo se notabilizaram pela agricultura, pela indústria e pelo comércio. Era uma cultura nova, que os nativos não conheciam e até desprezavam: trabalho, escola e estudo, disciplina, higiene, respeito religioso, festas sazonais etc.
De início ridicularizados; depois, admirados. E veio uma segunda geração, que, por tais qualidades, não demorou em começar a fornecer quadros para as administrações locais e, em seguida, participar da política partidária. É notável a participação dos alemães na Revolução Farroupilha, por exemplo.
Uma das características dos alemães é o fato de muitos deixarem escritos, memórias ou apontamentos. Isso acaba sendo mais uma contribuição cultural?
Bem, não deve ser esquecido que o grosso dos mercenários de 1824 não era gente muito culta e, como tal, pouco chegada às letras. Pouco ou quase nada nos legaram em escritos. Todavia, o pessoal mais esclarecido – alguns oficiais e médicos – nos deixou relatos muito interessantes, que permitem que possamos reconstituir as suas aventuras nestas plagas.
No caso dos “brummers”, quais eram as características mais marcantes destes?
Os brummers, contratados em 1850, eram de um nível sociocultural muito superior aos mercenários de 1824. Estes eram pobres agricultores e desempregados urbanos de baixa extração, sem futuro em uma Europa ainda se recuperando das devastadoras guerras napoleônicas e que buscavam no Brasil oportunidade para o recomeço de uma vida digna.
Já a maioria dos brummers era formada por indivíduos mais cultos, artistas, boêmios, aventureiros, politizados, e que haviam se envolvido nas revoltas liberais começadas em 1848 na França e que se expandiram para a Alemanha.
O Império Alemão foi duro com esses revoltosos. Cantou a metralha em Berlim e quem pôde fugiu para o norte, região de Holstein e Hamburgo. E por lá andavam vagando, desocupados, quando surgiu a oferta do governo brasileiro de contratá-los como soldados.
E, mais uma vez, parcela desse grupo permaneceu no Estado ou no País? Tiveram contribuição significativa por aqui?
A grande maioria ficou no Rio Grande do Sul. Por serem mais capacitados intelectualmente que os mercenários de 1824, não tiveram grandes dificuldades em, aproveitando os núcleos já florescentes implantados pelos de 1824, adaptar-se à nova vida no Brasil.
Como tinham muito conhecimento em topografia, foram muito empregados nas demarcações de terras, das quais surgiram novas cidades. Como foi o caso de santa Cruz do Sul. Os brummers se radicaram principalmente em Porto Alegre, São Leopoldo e na costa da Lagoa dos Patos,
na direção de Pelotas.
Os “brummers” foram chamados de “reclamões”, ou de rezingões. Por que passaram à história com tal marca?
Como disse acima, na Europa eles não viviam tão mal assim. Vieram para o Brasil mais como refugiados políticos e aventureiros. Quando passaram a ser submetidos às agruras da campanha militar, marchas intermináveis, frio, alimentação diferente, é natural que passassem a reclamar em voz alta.
Sob o ponto de vista do desempenho militar, foram esses os dois grandes grupos de alemães que ajudaram a defender o Brasil? Ou houve, mesmo, outras ajudas?
Os mercenários de 1824 lutaram sob a bandeira imperial e lutaram bem. Não podem ser acusados de nada nesse sentido.
Já os brummers nunca entraram em combate. Inclusive por falta de confiança no seu eventual desempenho na frente de combate.
Em toda a campanha contra Rosas, apenas menos de uma centena de brummers foi utilizada na batalha de Monte Caseros (3 de fevereiro de 1852), para bater com tiros distantes as baterias dos argentinos. E isso porque só eles sabiam manejar os recém-adquiridos fuzis Dreyser, de repetição. E só.
Não há registro histórico de que alguma outra tropa estrangeira tenha, em todos os tempos, sido contratada como mercenária pelo governo brasileiro.
O senhor entende que os germânicos talvez tenham sido, dos estrangeiros, os que mais se apresentaram para ajudar a defender o Brasil independente?
Veja, não foi pacífica a contratação de mercenários alemães nem em 1824, nem em 1850. Os altos escalões do Exército Imperial não queriam. E foi por teimosia do Imperador Dom Pedro I, português, e que devia ter lá as suas razões para insistir, que os mercenários vieram. E foram recebidos e tratados com extrema má vontade.
Em todo o caso vieram, motivados por um monte de paixões, menos o patriotismo, e cumpriram com seu dever contratado. Isso é meritório. Mas não há por que supervalorizar a sua contribuição militar para a sedimentação da independência do Brasil, quer no campo interno, quer no externo.
Num olhar retroativo, a solução de um Uruguai independente foi de fato a melhor alternativa para apaziguar o sul da América?
Foi sim a melhor solução, como defendo em meu livro A saga do Prata. Em termos geográficos, o Uruguai é uma continuação do Brasil. Mas a alma uruguaia é, e sempre foi, platina.
Tivemos a sorte de a Inglaterra ter enviado para resolver o impasse um dos seus melhores diplomatas, Lord Ponsomby, pai da genial solução: um “estado tampão” entre Brasil e Argentina. E, de lambuja, a Inglaterra ganhou uma estratégica base comercial na porta de entrada do estuário platino.
O Sul do Brasil, o Uruguai e a Argentina, por conta das disputas que envolveram e da complexidade da formação étnica e territorial, constitui um caso único em realidade de mundo?
Bem, parece que em termos de definição de fronteiras terrestres, os problemas estão superados na região platina. Da qual, nós, gaúchos, fazemos parte. Na verdade, respira-se estabilidade nesse aspecto.
Sinceramente, não sei se foi um caso único no mundo. A História ensina que fronteiras são demarcadas com guerras. Acredito que devam ter acontecido outros casos similares no mundo.
O senhor comandou o 8º BIMtz, em Santa Cruz. O que essa experiência significou em sua carreira?
Comandar uma unidade é o ápice da carreira de qualquer oficial. Na verdade, ele é treinado toda a vida para isso. Comandar é baixar ordens e fiscalizar execuções. É uma atividade diuturna. Pelos regulamentos militares, o comandante é responsável por tudo que acontece e deixa de acontecer em sua jurisdição. É uma responsabilidade bárbara. É no comando de um batalhão de combate, como era o saudoso 8º, que o profissional tem a oportunidade de encontrar a sua realização e a sua redenção. Foi o meu caso.
Atualmente, a que temas o senhor dedica os seus interesses de historiador?
Bem, com o meu último livro, A revolta de 1922, dei uma pausa na abordagem de temas ligados à história militar brasileira. O livro foi muito bem recebido e pretendo sair de campo depois de ter marcado um gol de placa.
Que obras o senhor apontaria para quem quiser se familizarizar com todos eestes temas?
Referente aos mercenários de 1824 são de leitura obrigatória:
a) BÖSCHE, Eduardo Theodoro – “Quadros alternados de viagens terrestres e marítimas, aventuras, acontecimentos políticos, descripção de usos e costumes de povos durante uma viagem ao Brasil” – (Revista do IHGB – Tomo – 83 – 1918).
b) HUNSCHE, Carlos H. – “O ano 1826 da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul” – (Edição Metrópole – POA – 1977).
c) OBERACKER Jr., Carlos – “Jorge Antônio Von Schaffer – Criador da Primeira corrente emigratória alemã para o Brasil” – (Edição Metrópole – POA – 1975).
d) SCHLICHTHORST, C. – “O Rio de Janeiro como é – 1824 – 1826 (Huma vez e nunca mais”” – (Editora Getúlio Costa – RJ).
e) SEIDLER, Carlos – “Histórias das Guerras e Revoluções do Brasil de 1825 a 1835” – (Cia Editora Nacional – 1939).
f) SEIDLER, Carl – “Dez Anos no Brasil” – (Livraria Martins – SP).
g) TESTEMUNHA OCULAR, Uma – “Contribuições para a História da Guerra entre o Brasil e Buenos Aires nos anos de 1825, 1826, 1827 e 1828* – (Papelaria Velho – RJ ´1938).
h) LEMOS, Juvencio Saldanha – “Os Mercenários do Imperador” – (Edição Letra e Vida – POA – 2013).
Relativamente aos mercenários de 1851 (Brummers):
ANDRÄ, Helmut – “Deutsche Söldner in Brasilien” (Brasil-Post Ltda – 2.000).
LANGE, Francisco Lothar Paulo – “Frederico Lange – História de um Resmungão da Legião Alemã de 1851 no Brasil” – (Curitiba – 1995)
A LEGIÃO DOS ESTRANGEIROS – Brummers – Relatório do Ginásio Anchieta, POA/RS. Publicado no fim do Ano Letivo de 1938. Tipografia do Centro.
LEMMERS-DANFORTH, Maj Fedor von – “A índole da Legião Alemã de 1851 a serviço do Império do Brasil” – (Boletim do Centro Rio-Grandense de Estudos Históricos – Vol. III – 1941).
LENZ, Cristóvão; SCHÄFER, Henrique: SCHNACK, Jorge Júlio – “Memórias de Brummer” – (Edição EST, POA – 1997).
MÜLLER, Pastor Elio Eugenio – “Militares prussianos (Brummer) que contribuíram para o desenvolvimento da Colônia de Três Forquilhas”.
SCHMID, Albert – “Os Rezingões ´Uma Legião estrangeira de Alemães, a serviço do Brasil, na guerra contra Rózas” – (Imprensa Militar – RJ – 1951).
TESTEMUNHA OCULAR (traduzido do alemão por Alfredo de Carvalho) – “Retrospecto da Guerra contra Rosas e as Vicissitudes das Tropas Allemans ao serviço do Brasil. Por uma Testemunha Ocular” – (Revista do IHGB, 1915).
WENDROTH, Herman Rudolf – “Aquarelas – O Rio Grande do Sul em 1852” – (Governo do Estado do Rio Grande do Sul)
WIEDERSPAHN, Henrique Oscar – “Antecedentes Político-Militares dos Brummers” – (Anais do IV Simpósio de História da Imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul – 1980).
WIESER, Lothar – “Deutsche Turnen in Brasilien” (Arena Publications, London, 1990).
LEMOS, Juvencio Saldanha – “Brummers – A Legião Alemã contratada pelo Império Brasileiro em 1851” – (Edigal, POA, 2022).
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