Em 2004, há quase duas décadas, a partir de mobilização no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil passou a integrar a Missão de Paz formada por contingentes destacados por diferentes países para auxiliar as instituições e a população do Haiti. Esse país do Caribe enfrentava inúmeros problemas econômicos e de governança, em um conflagrado ambiente social. A ajuda brasileira era para durar seis meses. No final, o Brasil permaneceu ativamente envolvido com a questão haitiana por 13 anos, até 2017, ao longo dos quais, a partir da participação de milhares de militares, o País deixou legado na infraestrutura, fundamental na reconstrução, na segurança e na relação fraterna com o povo.
Entre os profissionais do Exército Brasileiro que atuaram no Haiti esteve um santa-cruzense, Sirio Sebastião Fröhlich, desde 2010 radicado em Brasília. A vivência junto a essa missão humanitária foi de tal forma marcante que ele, com sua experiência e a especialização na área de Comunicações, se sentiu motivado a perenizar as memórias em forma de livro.
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Assim, de pesquisas, apontamentos e dezenas de depoimentos recolhidos resultou o livro Azul da paz: Braengcoy – Construindo a paz no Haiti, lançado em 2022 pela editora da Biblioteca do Exército. Em 236 páginas, enriquecidas por dezenas de fotografias, várias de sua autoria, compartilha um retrato vívido da rotina naquele país. Como tal, tende a constituir leitura emocionante para todos os que, de alguma forma vinculados à própria Missão de Paz, têm uma memória compartilhada dos fatos e das ações. Mas o conteúdo não é menos inspirador para todos os demais, interessados em compreender razões e motivações para o estado das coisas no Haiti.
Essa nação, cumpre referir, é uma das que oferece a mais paradoxal reflexão na realidade global contemporânea. Afinal, trata-se de um ambiente que se poderia definir de paradisíaco, em pleno Caribe, na América Central; e, no entanto, apresenta uma das mais baixas taxas de desenvolvimento humano em todo o planeta. Foi a essa terra, a Ilha Hispaniola, que Colombo aportou em 1492, na primeira viagem documentada ao continente americano. Posteriormente, a ilha foi dividida, com o atual Haiti, a oeste, tornando-se possessão francesa, e a República Dominicana, a leste, pertencente à Espanha.
Houve, assim, duas influências culturais no mesmo ambiente, mas com a mesma pressão de exploração colonial. Com mão de obra escrava, o Haiti, então chamado de Saint-Domingue, enviava riquezas, em especial o açúcar, à França. Em 1804, finalmente conseguiu a independência após uma revolta popular, tornando-se a primeira nação da América Latina, e também a primeira nação negra, a obter autonomia, já com o nome de Haiti, usado pelos povos primitivos, e tendo a capital em Porto Príncipe.
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Depois de décadas de andanças pelo Brasil e pelo mundo, aos 57 anos o santa-cruzense Sirio Sebastião Fröhlich ensaia um reencontro com sua terra natal. Nascido no Hospital Santa Cruz, em família de dez irmãos (oito vivos) que se radicou em Entre Rios, interior de Vera Cruz, quando completou 18 anos ele tomou a decisão de deixar o lar para se fixar em Santa Cruz. A meta era estudar e encaminhar alguma atividade profissional.
Mas então veio o serviço militar, em 1984, no antigo 8º Batalhão de Infantaria Motorizado (BIMtz), atual 7º Batalhão de Infantaria Blindado (BIB). De soldado Sirio passou a cabo, e logo a sargento. Não mais saiu do Exército. Em 1987, na Escola de Sargentos das Armas, concluiu o curso de Comunicações, que viria a ser sua área de atuação. E em 1994 concluiu ainda o curso de Direito na PUCRS.
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Após passagem por Minas Gerais, foi trabalhar em Porto Alegre, e depois em Boa Vista, no extremo Norte do País, para retornar a Santa Maria, onde ficou por dez anos, três no Colégio Militar e sete no comando da 3ª Divisão de Exército. Finalmente veio a transferência para o Gabinete do Comandante do Exército, em Brasília, e logo a experiência de integrar a Missão de Paz no Haiti, como membro da equipe de Comunicação Social, da qual resultou o livro Azul da paz.
Na capital federal, vive ao lado da esposa Miriam Hochscheidt, com a qual tem os filhos Gustavo, 26, auditor de finanças e controle da Controladoria Geral da União, e Ana Carolina, 22, advogada. Agora, começa a passar temporadas em Santa Cruz, onde coordena reformas em casa da família, visando, no futuro, reaproximação mais constante com a terra natal.
Magazine – O senhor integrou, pelo Brasil, a Missão da ONU para estabilização no Haiti. Passados esses anos, quando o senhor lembra daquela experiência, e em olhar retroativo, o que mais se salienta em sua memória sobre aquele país e seu povo?
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Sirio Sebastião Fröhlich – Inicialmente, um sentimento que mescla alegria e tristeza: alegria por ter participado de uma missão humanitária que levou estabilidade política e esperança ao povo haitiano; e tristeza por saber que, após o término da missão, a instabilidade e a insegurança estão de volta ao Haiti. Contudo, o que apreendi da índole dos haitianos me faz crer que o futuro trará dias melhores.
A que mais devem ser creditadas, em sua avaliação, as dificuldades de desenvolvimento no Haiti? A situação haitiana deve ser analisada a partir de algumas premissas, dentre as quais destaco a histórica e a política. O Haiti foi o primeiro país latino-americano a alcançar a independência. Nesse processo, foi destruída a infraestrutura baseada na cana de açúcar e foi obrigado a indenizar a França pelos investimentos realizados na colônia, legando décadas de miséria à população haitiana . Politicamente, o Haiti sempre foi instável, seja por questões internas, de origem cultural, seja por intervenção ou interferência externa, sobretudo no período da Guerra Fria, pela proximidade com Cuba e Estados Unidos. Também cabe destacar que o Haiti sofre graves e constantes abalos climáticos por furacões e tempestades tropicais.
Apesar de todos os obstáculos naquela nação, no livro o senhor enfatiza que a população transmite muito otimismo e uma rica cultura, não é mesmo? Sim, a ponto de ser contagiante. Na base brasileira trabalhavam vários auxiliares locais; apesar das dificuldades pessoais, eram excelentes intérpretes, auxiliares administrativos e de serviços gerais. Estavam sempre disponíveis e de astral elevado. O contato com a população em geral ocorria na “Feira da Paz”, espaço em que populares e artistas locais expunham a arte haitiana em forma de telas, entalhes em madeira e pedra etc. Nesse ponto, é importante destacar a facilidade dos haitianos em aprender idiomas. Em Português, Espanhol, Inglês e até em Alemão, não perdiam negócios.
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O senhor entende que a contribuição brasileira no contexto da Missão de Paz deixou um legado muito importante e inspirador no Haiti? Certamente, e obtive essa confirmação de haitianos, em entrevistas. A instalação de um poste de luz com célula fotovoltaica proporcionava às crianças a possibilidade de estudarem à noite, sob a atenção dos pais, ou a perfuração de um poço artesiano que proporcionava água limpa para hospitais e população. São ações que, multiplicadas em várias cidades, além do retorno imediato, são capazes de impactar positivamente o futuro. No mesmo sentido, a segurança e a ajuda humanitária prestadas após o terremoto de 2010 ou em várias tempestades tropicais são ações que fixaram a imagem do brasileiro como um povo solidário e atencioso.
Em que medida ou de que forma as vivências no Haiti se refletiram ou inspiraram em sua vida posterior à missão? Apesar de o mandato da ONU restringir o contato com a população local, eu e outros militares tivemos a oportunidade de visitar orfanatos e escolas, levando assistência humanitária. Para mim, esse convívio proporcionou a retomada do contato humano e a percepção da importância de um abraço e um sorriso quando a barreira do idioma se impunha. Essa experiência me enriqueceu profissional e pessoalmente, sobretudo. De tudo, restou a certeza de que, independentemente do poder das palavras, um sorriso franco é superior a elas. Isso valia lá; isso vale para a vida.
O senhor ainda mantém contato com o Haiti? E como as pessoas podem auxiliar entidades de lá ou parcelas de seu povo? Mantenho contato com alguns amigos haitianos, além de freiras e missionários brasileiros que permanecem por lá, prestando ensino e apoio em saúde, de suma importância neste momento, em que a instabilidade política e social está de volta ao Haiti. Uma das maneiras de ajudar é comprando o livro, no valor sugerido de R$ 30,00, que será revertido integralmente para instituições que prestam apoio a crianças carentes, no Haiti. O livro pode ser pedido pelo e-mail siriof@hotmail.com ou pelo WhatsApp (61) 9 9267 8272. Caso alguém queira doar algum valor, pode me contatar que passarei o Pix para depósito direto em uma conta vinculada a uma das irmãs de caridade que está no Haiti.
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Após a independência do Haiti, no começo do século 19, a completa destruição da infraestrutura nas fazendas de produção de açúcar deixou como legado uma economia e um ambiente social combalidos, que não mais se reergueram. Para completar, a localização coloca o Haiti, hoje com cerca de 11,5 milhões de habitantes, no caminho de constantes tempestades tropicais e de terremotos, de maneira que a cada poucos anos a infraestrutura local é afetada e arrasada. Ainda que dividam a sina das ameaças naturais, enquanto o Haiti é dominado pela pobreza, pela violência e pela degradação ambiental, a vizinha República Dominicana consegue ostentar uma melhor qualidade de vida.
No contexto de um cenário social e político conflagrado é que a ONU implementou as Missões para a Estabilização do Haiti, da qual participaram contingentes brasileiros. Uma das áreas de atuação mais relevante foi a de engenharia, fundamental para a reconstrução, e justamente referida por Sirio Fröhlich no subtítulo de seu livro, na sigla Braengcoy, do inglês Brazilian Engineering Company, ou Companhia Brasileira de Engenharia. Esta deixou um legado valioso para os haitianos, ao atuar na desobstrução, na recuperação e na construção de estradas, pontes, prédios e especialmente poços artesianos, como Sirio refere, entre tantas outras intervenções.
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O livro aponta o esforço ainda maior necessário após o impressionante terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou 300 mil pessoas e colapsou toda a economia local. No período posterior, a atuação brasileira foi decisiva para restabelecer condições de sobrevivência em muitas regiões daquele país. Sirio refere em particular o quanto os soldados brasileiros deixaram marcas de relacionamento respeitoso, com humanidade, solidariedade e afeto, junto a diferentes gerações de haitianos. Essa troca foi realçada em constantes ações sociais, como as realizadas junto a escolas e instituições de apoio, como expressam as fotos que ilustram esta página, em que o próprio Sirio acolhe crianças haitianas.
Imbuído desse espírito de solidariedade, ele inclusive abriu mão de valor referente a direito autoral sobre o livro: os exemplares que lhe couberam, como autor, ele comercializa a R$ 30,00, receita que transfere integralmente a uma organização que realiza ações sociais no Haiti. Nesse sentido, interessados podem adquirir ou encomendar a obra com o próprio autor pelo e-mail siriof@hotmail.com ou pelo WhatsApp (61) 9 9267 8272.
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Fröhlich esteve no Haiti em três ocasiões. A primeira, em 2012, na equipe responsável por viajar ao Caribe a fim de mapear a situação e preparar o terreno para o envio de um novo contingente do Exército Brasileiro. Em 2013, foi a vez de ele próprio integrar a Missão de Paz, permanecendo por seis meses em solo haitiano. Desempenhou a função de oficial adjunto de Comunicação Social e de Coordenação Civil-Militar da Braengcoy. E em 2015 retornou àquela nação, então já para colher subsídios visando a redação de seu livro.
Azul da paz, aliás, é sua segunda incursão pela literatura. Em 2011 publicara Longa jornada – Com a FEB na Itália, e em 2015 lançou Vozes da guerra, ambos sobre a atuação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial.
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