Desde que a pandemia do novo coronavírus começou a ganhar destaque, em dezembro de 2019, na China, médicos, cientistas e outros profissionais ligados à área da saúde têm dedicado seus esforços para tentar encontrar tratamentos eficazes da Covid-19, a fim de evitar que os pacientes desenvolvam complicações da doença e precisem de internação hospitalar. Na área científica, milhares de estudos com diferentes medicamentos já foram e continuam a ser realizados e publicados. Contudo, os resultados muitas vezes distintos e conflitantes dificultam a busca por uma prescrição que seja realmente eficaz.
Nas últimas semanas, grupos de médicos favoráveis ao chamado tratamento precoce publicaram notas e informativos em diversos jornais do Estado e do País, reafirmando sua posição pelo emprego de uma série de medicamentos para reforçar as defesas do organismo e impedir que a doença evolua para complicações graves. Essa abordagem, no entanto, reacendeu uma polêmica que extrapola as áreas médica e científica e ganha contornos políticos, considerando que vários nomes da política nacional e internacional já demonstraram ser favoráveis ou contrários ao tema.
Isso porque, por outro lado, várias entidades representativas da área médica e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) não indicam o tratamento precoce. Esse conflito de posicionamentos e informações vem gerando dúvidas na população e divisões entre os próprios médicos, com muitos profissionais relatando dificuldade para debater estudos e experiências entre os colegas. Acerca desse tema, a reportagem da Gazeta do Sul ouviu diferentes posicionamentos para entender e elucidar o debate aos leitores.
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A OMS reforçou seu posicionamento contrário ao tratamento precoce com hidroxicloroquina. Nota da organização diz que os estudos existentes até o momento não mostram efeitos significativos da substância para evitar internações ou mortes por Covid-19. Por outro lado, ela causa efeitos adversos no organismo. A “forte recomendação” da OMS é baseada em evidências de alta certeza obtidas após seis estudos com mais de 6 mil participantes.
“A evidência de alta certeza mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo em mortes e admissões em hospitais, enquanto evidência de certeza moderada mostrou que a hidroxicloroquina não teve efeito significativo sobre infecções confirmadas em laboratório e provavelmente aumenta o risco de efeitos adversos”, declarou a OMS.
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A organização considera que a droga não tem mais prioridade para pesquisa e que os esforços devem ser direcionados para avaliar outras substâncias mais promissoras. “Essa diretriz se aplica a todos que não têm Covid-19, independentemente da exposição a uma pessoa com a infecção”, reforçou.
O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina foi proposto no início da pandemia como uma opção para prevenir o agravamento do quadro de pacientes com coronavírus. O possível tratamento foi amplamente difundido e defendido por políticos como o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, mesmo sem que houvesse comprovação científica de sua eficácia. A OMS suspendeu os ensaios clínicos ainda na metade do ano passado, após diversas investigações terem demonstrado pouco ou nenhum efeito da droga sobre a Covid-19.
Além da OMS, alguns órgãos médicos também se posicionaram contra o tratamento precoce. É o caso da Associação Médica Brasileira (AMB) e da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), que recentemente emitiram uma nota conjunta tratando sobre o tema. Conforme o documento, as evidências científicas demonstraram que até o momento nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce da Covid-19.
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“Atualmente as melhores sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil”, diz o texto.
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A nota das duas instituições também aborda as vacinas, tratando a imunização da população como a única forma eficaz de evitar o agravamento da Covid-19, considerando que nenhuma medicação se mostrou capaz de conter o avanço da doença e o desenvolvimento de quadros graves que exigem internação em terapia intensiva. “A desinformação dos negacionistas que são contra as vacinas e contra as medidas cientificamente comprovadas só piora a devastadora situação da pandemia em nosso país.”
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Dos seis laboratórios que fabricam cloroquina e hidroxicloroquina no Brasil, quatro deles – Apsen, Farmanguinhos/Fiocruz, EMS e Sanofi/Medley – já se posicionaram contrários à utilização da droga para tratar a Covid-19. Em relação à ivermectina, a farmacêutica alemã Merck, que produz o medicamento, também já declarou que os dados disponíveis até agora não apontam eficácia para conter a doença. A ivermectina é um vermífugo geralmente indicado para a eliminação de parasitas.
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Reconhecido por sua atuação como médico pneumologista em Santa Cruz do Sul, Carlos Eurico Pereira também se posicionou favorável ao uso de medicamentos para tratar a Covid-19 em estágio inicial. “Eu acho que existe uma grande hipocrisia. Se você adoecer e tomar um remédio, tem que oferecer isso pros seus pacientes. Eu ofereço aquilo que eu usaria, e se hoje eu adoecesse, faria o tratamento precoce, usaria todos os medicamentos disponíveis”, disse, também em entrevista à Rádio Gazeta FM 107,9.
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Conforme Carlos Eurico, várias drogas já muito utilizadas no Brasil podem ser prescritas para tratar a doença, contudo, a indicação médica é fundamental em razão dos riscos envolvidos. “São seguras e, de certa maneira, eficazes para diminuir a duração, a gravidade e o risco de internação, especialmente em UTI. E se existe alguma evidência, por menor que seja, e elas não são tão pequenas assim de que nos ajudariam nesse sentido, nesse momento de guerra vale tudo”, frisou.
“São medicamentos que já são amplamente divulgados pela imprensa e todo mundo já conhece. Quando os médicos não prescrevem, as pessoas já chegam utilizando através dos seus próprios meios, que são a ivermectina, a hidroxicloroquina e a azitromicina. Estes são utilizados nos primeiros dias e têm alguma eficácia, desde que prescritos por médicos, na dose adequada e no tempo correto.”
Ele também esclareceu a diferença entre tratamento preventivo e precoce, questão que tem gerado confusão. “Preventivo significa antes de ter a doença. A única coisa, no meu ponto de vista, que ajuda a não ter doença é seguir as medidas de distanciamento, utilizar a máscara. Nesse caso a evidência científica é muito fraca em se utilizar hidroxicloroquina, ivermectina ou azitromicina para não ter a doença”, afirma Carlos Eurico. Ele conta que muitas pessoas que procuram seu consultório em razão da Covid-19 tomaram esses medicamentos e contraíram a doença da mesma forma.
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Em relação ao contágio, o pneumologista pediu que a população esteja atenta a qualquer tipo de sintoma, por menor ou mais corriqueiro que possa parecer. “Quem tiver com sintomas se isole, pelo bem das pessoas. O que eu mais tenho visto é gente com sintoma que insiste em ir trabalhar e ficar perto de outros. Ficou sem cheiro, sem gosto, tossiu, espirrou, trancou o nariz, teve dor de barriga, náusea ou cansaço além do normal? Hoje é Covid”, alertou.
Além do campo teórico, também existem relatos de médicos que atuam na linha de frente do combate à Covid-19 em Santa Cruz do Sul. Em recentes entrevistas à Rádio Gazeta FM 107,9, o médico intensivista Rafael Foernges, que coordena as UTIs Covid tanto do Hospital Santa Cruz (HSC) como do Hospital Ana Nery, e o infectologista Eduardo Sonda, responsável pelo controle de infecções do Ana Nery, afirmaram que, em suas experiências diárias, não percebem eficácia do tratamento precoce.
“São doenças virais. Por mais que a gente use remédios que diminuam a entrada do vírus no organismo, somente um vírus é suficiente para desencadear uma resposta inflamatória que nós, intensivistas, conhecemos muito bem”, afirma Foernges. Ele utiliza o exemplo da pneumonia, doença à qual muitos pacientes reagem bem, enquanto outros desenvolvem sepse associada, que é uma resposta inflamatória do organismo à infecção. Segundo ele, a mesma situação acontece com a Covid-19, na qual uma parcela dos infectados vai acabar desenvolvendo quadro grave e precisará de internação.
“A maioria dos pacientes (internados em UTI) usaram algum tipo de terapia para tentar se prevenir e estão na UTI com forma grave”, diz Foernges. Ele explica que o tratamento utilizado na terapia intensiva varia de acordo com o quadro apresentado por cada pessoa, e pode requerer medicamentos que modulam a inflamação, anticoagulantes ou outros, conforme a necessidade e a resposta individual.
O infectologista Eduardo Sonda seguiu pela mesma linha. “É muito triste a gente dizer que não tem tratamento efetivo pro coronavírus. Mesmo para os pacientes mais graves, temos algumas opções, mas nada é um tratamento real que mude o curso da doença”, destacou. “Nós vemos muitas pessoas usando o viés da experiência própria e outros vieses, às vezes até políticos nessas questões de propagar essas medicações. Cientificamente, infelizmente, não temos nada comprovado que funcione”, completa.
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Sonda ainda fez uma analogia com a obesidade, um dos principais fatores de risco para a Covid-19. Segundo ele, a busca por um medicamento para emagrecer sempre é mais fácil do que ter uma alimentação balanceada, hábitos saudáveis e praticar exercícios físicos. O mesmo ocorre com o corona-vírus. Parece mais fácil buscar remédios para evitar ou tratar a doença do que respeitar o isolamento social, usar máscara e higienizar as mãos, práticas que comprovadamente evitam o contágio.
Responsável por fiscalizar a conduta dos médicos no Estado, o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) afirmou que os profissionais estão autorizados e têm autonomia para prescrever o tratamento que considerem melhor para seus pacientes, desde que com o consentimento deles e respeitando a ética da profissão.
O Cremers informou, ainda, que não tem condições de validar ou não tratamentos que precisam ser cientificamente comprovados. Essa função cabe às universidades, associações e demais pesquisadores da Medicina. O órgão reforçou o pedido para que a população faça o distanciamento social, use máscara e higienize as mãos, únicas formas comprovadas até o momento de evitar a disseminação do vírus.
Preventivo ou precoce?
São consideradas tratamentos preventivos as práticas que podem contribuir para evitar doenças. Um exemplo são as atividades físicas, que comprovadamente reduzem as chances de uma pessoa desenvolver diversas doenças e complicações. As vacinas também são uma forma de prevenção. No caso da Covid-19, as únicas medidas que comprovadamente evitam o contágio são a utilização de máscara, higiene das mãos e isolamento social. Essas práticas também são conhecidas como profilaxia.
Já o tratamento precoce diz respeito a diagnosticar doenças em estágio inicial e começar as intervenções o mais cedo possível, com o objetivo de evitar que o quadro se agrave para complicações maiores. Pode envolver a mudança de hábitos do paciente, uso de medicamentos e também intervenções cirúrgicas, a depender de cada caso. Tratando-se da Covid-19, alguns médicos recomendam o uso de remédios para tentar impedir que a doença se agrave, contudo, o tema é motivo de divergência entre os profissionais em razão da falta de comprovação científica de eficácia.
Em razão da polêmica, a Secretaria Municipal de Saúde de Santa Cruz do Sul se manifestou por meio de nota. “O tratamento do paciente é um ato exclusivamente médico. Sendo assim, a gestão municipal de saúde esclarece que não há vedação de tratamento precoce, assim como também não há eficácia comprovada. Por isso, fica a critério de cada profissional avaliar o melhor tratamento para o paciente”, diz o texto.
Segundo a médica Clauceane Vanzke Zell, coordenadora do Ambulatório de Campanha, não há protocolo estabelecido para prescrição aos pacientes que são atendidos no local, cabendo aos profissionais decidirem. A única preferência é por medicamentos disponíveis nas farmácias da Prefeitura, a fim de evitar que as pessoas tenham de ir a mais de um local. Contudo, o médico tem autonomia para prescrever o que achar mais adequado.
Acerca do tratamento precoce para a Covid-19, Clauceane diz não ter conhecimento de prescrições de medicamentos do chamado Kit Covid (hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina e azitromicina) entre os profissionais que atuam no Ambulatório de Campanha. “Nós estudamos bastante. Eu estou trabalhando com Covid há um ano, e a percepção é de que os pacientes que usam esses medicamentos não têm melhora no desfecho da doença em relação àqueles que não usam”, afirma.
Segundo ela, há diversos casos de pessoas que acabam precisando de atendimento em função dos efeitos colaterais desses remédios, como problemas cardíacos e descompensação de outras doenças que já possuíam. “O que eu vejo na prática realmente é que não tem sido prescrito por falta de evidências de que melhore o desfecho, que é ir para o hospital ou falecer. Essas medicações não melhoram o resultado final.”
Também favorável ao tratamento precoce, a médica Valérie Kreutz, que atua em Porto Alegre e é pediatra e mestre em imunologia, diz que hoje existe uma grande quantidade de estudos sendo publicados acerca da Covid-19, e por isso é importante que os profissionais estejam atentos e atualizados. “Muitos médicos não conseguem lidar com toda a informação disponível e acabam seguindo o que diz uma pessoa ou uma liderança. Eu não sigo ninguém, sigo o que eu leio nos artigos”, afirma. “E quando eu vejo um artigo falando mal, me interessa muito, eu tenho que ler, porque se ele tiver fundamento eu posso ter que mudar a minha prática. Tudo pode ser mudado”, completa.
Valérie enfatiza que as práticas da medicina não são definitivas, e nem podem ser. “O conhecimento muda ao longo do tempo. Hoje, com o conhecimento atual, temos um arsenal de medicações que podem ser utilizadas.” Segundo ela, contudo, o médico deve conhecer os remédios, saber qual a interação deles com outros e quais as contraindicações. “Isso que é o importante, e hoje essa discussão não está podendo ser feita no meio médico. Hoje não conseguimos falar com colegas com quem há um ano falávamos sobre qualquer assunto”, completa.
A médica acredita que a politização do debate está dificultando o avanço do conhecimento da medicina sobre a Covid-19. Ainda de acordo com Valérie, as experiências adquiridas pelos profissionais que atendem pacientes nas diferentes fases da doença são distintas, e elas deveriam ser discutidas e unificadas. “Essa união entre os médicos só tem a acrescentar. Nós temos que combater quem está se parando os médicos, precisamos ter um discurso maduro. Nenhuma dessas medicações é solução mágica. Muitas vezes o paciente evolui para a fase três (internação), mas existem relatos de que elas podem diminuir a necessidade, então, só por essa possibilidade já vale a pena investigar”, afirma.
Ela também defende a realização de eventos para que os médicos possam debater publicamente os estudos. “Isso é uma coisa vital na medicina, nós temos que discutir os artigos.”
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Ao comentar sobre o chamado Kit Covid, denominação adotada por alguns governos para a distribuição dos medicamentos do tratamento precoce, Valérie Kreutz diz que o nome passa uma impressão errada. “Isso talvez foi uma estratégia gerencial para disponibilizar os remédios aos médicos que quisessem prescrever e os pacientes terem acesso. Eu acho um nome muito ruim, porque ele dá a ideia de uma receita de bolo”, comentou. Segundo ela, o tratamento é individualizado e as medicações prescritas variam de acordo com a fase em que a doença se encontra e a condição de cada pessoa.
O médico Ozório Sampaio Menezes, que é clínico-geral, defende o tratamento precoce e destaca que não se trata do uso isolado de cloroquina ou ivermectina mas de, pelo menos, cinco medicamentos associados. Diretor do Hospital Dr. Homero, de Sobradinho, Menezes diz que os medicamentos foram distribuídos aos funcionários da instituição ainda no início da pandemia, tanto de forma preventiva – a chamada profilaxia – como para tratar os que já estavam com o vírus no organismo.
“Então nós temos experiência, e antes do fim do ano (passado) já começamos a acrescentar mais remédios. Passamos a usar cinco, na média, dependendo do perfil do paciente, porque o tratamento é individualizado”, esclarece. Entre os medicamentos citados estão hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina.
Em relação à polêmica que vem envolvendo a proposta de tratamento precoce, Menezes diz que ela pode ser atrelada a vários fatores. “Pode ser conflito de interesses de alguns médicos, que eu sei que existe. Em outros pode ser desinteresse, pois tenho colegas que dizem que não querem estudar e acabou, mas a maioria não tem mesmo é conhecimento. E não querem ter, porque ele está disponível”, afirma. Ele ainda manifestou ser favorável à implantação da abordagem nos postos de saúde, afirmando que ela poderia auxiliar a reduzir o impacto da doença na população.
“Não é possível nos dias de hoje o paciente chegar no posto com teste positivo e receber dipirona, ou na fase precoce receber um corticoide para tomar. Como nós não sabemos quem é que vai evoluir mal, tratamos todos”, completa.
Recentemente o Hospital Dr. Homero publicou um manifesto no jornal Gazeta da Serra, de Sobradinho, reafirmando sua posição favorável ao tratamento precoce. A nota foi assinada por 18 médicos que integram o corpo clínico da instituição.
A Anvisa anunciou nessa sexta-feira a autorização do uso do medicamento antiviral remdesivir para o tratamento da Covid-19. É a primeira droga a obter o registro específico da agência para tratar pessoas hospitalizadas por complicações da doença. O remdesivir foi desenvolvido para o tratamento do ebola, e os estudos sobre sua eficácia contra o coronavírus ainda estão em andamento.
A Anvisa esclareceu que o uso é restrito aos hospitais, para que possa haver monitoramento correto dos resultados e possíveis reações adversas. Ele não será vendido em farmácias, não substitui as vacinas e não poderá ser aplicado em pacientes intubados.
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