A poetisa, crítica literária e tradutora polonesa Wislawa Szymborska, falecida em fevereiro de 2012 aos 88 anos, poderia constituir um estudo de caso de síntese e de concisão na escrita. E mais ainda num mundo extremamente prolixo e prolífico, que escreve e imprime à exaustão. Tudo porque Wislawa publicou em sua longa vida basicamente cinco livros de poesia, entre 1957, ano de sua estreia, já com mais de 30 anos, e 2006, quando foi lançado o volume Instante. Foi o que bastou, no entanto, por sua profundidade e pelo diferenciado estilo, para que ganhasse nada menos do que o Nobel de Literatura, e isso em 1996, quando ainda nem havia lançado este último, nem o imediatamente anterior, Paisagem com grão de areia, de 1998.
Por isso, a leitura da obra de Wislawa soa tão importante e tão oportuna, como inspiração e como norte para todo e qualquer escritor, poeta ou não. E ainda mais por essa razão o lançamento de um novo livro da polonesa, agora anunciado pela Companhia das Letras, merece ser comemorado. Para o meu coração no domingo, o título da antologia, promete inclusive ser a mais ampla e panorâmica diante dos dois volumes anteriores da poetisa que a editora havia disponibilizado ao leitor brasileiro: Poemas, de 2011, e Um amor feliz, de 2016. Em comum entre as três edições, o apuro da tradução assinada por Regina Przybycien, que nesta nova incursão teve a parceria de Gabriel Borowski.
Para meu coração num domingo reúne 85 poemas, nos quais o lirismo, o inusitado do cotidiano, o humor e a fina ironia seguem como as marcas inconfundíveis para quem alguma vez já apreciou seus textos. E, apesar da leveza e do tom coloquial que ela soube imprimir aos versos, quase numa conversa ao pé do ouvido com o leitor, evidencia a ampla bagagem de referências históricas e culturais. Formada em Filologia, explorou tanto a etimologia quanto a semântica das palavras, no que exige de seus tradutores uma enorme capacidade de busca das palavras e das expressões mais adequadas a fim de chegar até suas imagens e a suas mensagens.
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Além da poesia, Wislawa ainda foi colaboradora de jornais, de maneira que algumas poucas coletâneas de crônicas conformam sua obra completa. Ela é um exemplo de que não é com volume ou com quantidade que se impressiona para a posteridade, mas sim com extrema qualidade e capacidade de síntese. Diante dessa grandeza, mais impressiona o fato de sua obra ter chegado de maneira tão tardia ao Brasil, 15 anos após a atribuição do Nobel, e sendo que já estava traduzida e editada em mais de 40 línguas no mundo todo.
Menos mal que agora tradutores como Regina Przybycien e outros especializados em literatura do Leste Europeu estão recuperando o atraso, e contemplando os leitores brasileiros com uma das mais vigorosas obras poéticas em todos os tempos. Para ler num domingo, e em qualquer dia da semana.
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Ficha
Um poema
“Um amor feliz”
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“Um amor feliz. Isso é normal,
isso é sério, isso é útil?
O que o mundo ganha com dois seres
que não veem o mundo?
Enaltecidos um para o outro sem nenhum mérito,
os primeiros quaisquer de milhões, mas convencidos
que assim devia ser – como prêmio de quê? De nada;
a luz cai de lugar nenhum –
por que justo nesses e não noutros?
Isso ofende a justiça? Sim.
Isso infringe os princípios cuidadosamente acumulados?
Derruba do cume a moral? Infringe e derruba, sim.
Observem estes felizardos:
se ao menos disfarçassem um pouco,
fingissem depressão, confortando assim os amigos!
Escutem como riem – é um insulto.
Em que língua falam – só entendi na aparência.
E esses seus rituais, cerimônias,
elaborados deveres recíprocos –
parece um complô contra a humanidade!
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É difícil até imaginar onde se iria parar,
se seu exemplo fosse imitado.
Com que poderiam contar a religião, a poesia,
o que seria lembrado, o que, abandonado,
quem quereria ficar dentro do círculo?
Um amor feliz. Isso é necessário?
O tato e a razão nos mandam silenciar sobre ele
como sobre um escândalo das altas esferas da Vida.
Crianças perfeitas nascem sem sua ajuda.
Nunca conseguiria povoar a terra,
pois raramente acontece.
Os que não conhecem o amor feliz que afirmem
não existir em lugar nenhum um amor feliz.
Com essa crença lhes será mais fácil viver e morrer.”
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(do livro Um amor feliz, de Wislawa Szymborska,
em tradução de Regina Przybycien)
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