Três anos depois de O dia da rua, lançado em 2018, a escritora santa-cruzense Marli Silveira retoma a publicação de poesia. Quantos dias cabem na noite acaba de chegar às livrarias, sob o selo Class, da editora porto-alegrense Bestiário, e proporciona um olhar panorâmico sobre a produção mais recente da poetisa, que se identifica também, e muito especialmente, com a filosofia, aliás sua área de formação. Igualmente ensaísta e cronista, Marli é mestre em Filosofia, pela Universidade Federal de Santa Maria, e doutora em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF).
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No intervalo entre as duas obras poéticas autorais, ela havia se voltado para a pesquisa e a teoria, com o lançamento de Liberdade rasurada: narrativas de dor e liberdades, em 2019, pela BesouroBox, e de Daseinpedagoria: da pendularidade da condição humana à singularidade desabitada como percurso para a (auto)formação na analítica existencial de Ser e Tempo, publicado pela editora carioca Ape’ku, ao final do ano passado. Este último decorre de sua tese de doutoramento, na qual investiga Martin Heidegger, como evidencia o subtítulo.
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E é no terreno comum que aproxima a filosofia e a poesia que Marli se movimenta. “Mas até mesmo na condição de filósofa sinto que a poesia é que é o meu lugar”, conta ao Magazine, ao apresentar e anunciar o novo livro. Cujo conjunto de poemas, explica, foi selecionado entre os versos que vinha elaborando desde a publicação de O dia da rua. Nesse meio-tempo, o mundo se defrontou com uma pandemia, e são as reflexões a partir dela decorrentes que, de algum modo, também conformam a paisagem humana e existencial da obra.
O texto de apresentação do volume é assinado pelo poeta, professor e historiador da arte gaúcho Armindo Trevisan, natural de Santa Maria e radicado em Porto Alegre, um dos grandes nomes da poesia brasileira contemporânea. É Armindo quem anuncia: “A primeira coisa que possivelmente te interessará nos poemas de Marli é sua lucidez”, decreta. “Em alguns momentos, tão grande lucidez chega a doer no coração!” Trevisan considera que a autora é uma poeta “inclassificável”, remetendo ao fato de que a poesia de Marli, inclusive por seu feitio, em muitos casos, de aforismos, igualmente pode ser apreciada como filosofia.
Poeta que é, ele próprio, Trevisan lança mão de uma alegoria para descrever o exercício da leitura. “Quando a Marli olha para o fundo do poço, e arrisca-se, inclusive, a lançar seu balde para dele tirar água límpida, ela se torna uma autora de respeito.” Em tempos tão sombrios, em épocas marcadas por tanta secura, e de terrenos tão estéreis no conjunto da sociedade, lançar, na profundidade do coração e da alma humanas, um balde para de lá extrair um pouco de lucidez, esse é um esforço valioso.
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Marli comenta que, em virtude dos protocolos da área da saúde, que ainda restringem atividades presenciais, ela não prevê sessão de autógrafos do livro de imediato. Com isso, interessados podem obter exemplar em livrarias (em Santa Cruz, a obra já está disponível na Iluminura), bem como junto à editora (bestiario.com.br) ou ainda com a autora. Marli já atuou na área pública, em Santa Cruz e Vera Cruz, como coordenadora de Cultura, e foi premiada em diversas ocasiões, assim como foi patrona de feiras. Atualmente, dedica-se exclusivamente à sua produção e integra linhas de pesquisa de pós-doc voltadas ao “cuidado de si e à formação humana”. Agora, leitores de poesia têm nova oportunidade de cuidar de si com esse novo livro.
QUANTOS DIAS CABEM NA NOITE, de Marli Silveira. Porto Alegre: Class, 2021. 96 páginas. R$ 40,00
Justiça
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Quando um dia
dar-me pela justiça ao seu lado,
e uma meia dúzia de deveres no bolso esquecida,
por conta terei que tudo valeu a pena,
exceto as ordens cravadas
na pele cansada
dos não amanhecidos.
Abaixo as fardas grossas,
cor de uma pátria inventada,
os deuses mercenários,
ladrões de amontoados de vida.
Abaixo a espera,
sempre calada,
os quandos,
não menos encolhidos.
Justiça se devora,
se arvora,
se grita.
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