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MEMÓRIA

Peter Kleudgen, um ícone de Santa Cruz

Antiga Igreja Protestante e Escola Complementar, esquina das atuais ruas Tenente Coronel Brito e Borges de Medeiros, em Santa Cruz

Peter Kleudgen. Ainda que não seja amplamente conhecido nos dias de hoje, é muito provável que esse tenha sido um dos mais importantes personagens da história de Santa Cruz do Sul. Em sua memória existe a Rua Pedro Kleudgen, no Bairro Aliança, na zona sul do espaço urbano, mas não teria sido nenhum exagero se ele tivesse sido homenageado dando nome à via mais central da cidade, a atual Rua Marechal Floriano.

Afinal, quem foi Peter Kleudgen e qual a sua importância? É quase certo que Santa Cruz, a partir do momento em que surgiu o projeto de colonização com imigrantes alemães, só tenha adotado as feições que ganhou, com a vinda de famílias específicas, graças a ele.

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Ocorre que, por um contrato que firmara com o governo da Província do Rio Grande do Sul, se tornara o agente responsável por selecionar na Europa e encaminhar as famílias para os lotes coloniais. Ele próprio recebera terras em Santa Cruz. Mas, curiosamente, não se sabe se alguma vez de fato conheceu pessoalmente o lugar.

O grande marqueteiro da colônia

A implantação da colônia provincial de Santa Cruz, a partir de meados do século 19, teve curiosamente um marqueteiro, um publicitário ou um propagandista de primeira hora, e muito eficiente. Que lançou mão, na época, do principal recurso de que dispunha ou estava disponível para ele: um relato escrito.

O alemão Peter Kleudgen havia estabelecido com o governo da Província do Rio Grande do Sul um contrato para que arregimentasse, na Europa, colonos dispostos a emigrar para o Brasil a fim de se fixar na nova Colônia de Santa Cruz, que estava sendo criada na região central, em território que pertencia a Rio Pardo. Em seu esforço de convencimento, no ambiente de condados, ducados e cidades germânicas, tratou de escrever um pequeno livro, de 48 páginas, no original publicado em 1852, descrevendo essa região, totalmente desconhecida para os europeus da época, e as supostas virtudes do projeto colonial.

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Seu compêndio foi lançado com o título de Die Deutsche Kolonie Santa Cruz in der Provinz Rio Grande do Sul in Süd-Brasilien (“A Colônia Alemã Santa Cruz na Província do Rio Grande do Sul no Sul do Brasil”, na tradução), e teve imediata repercussão na Europa. Constituiu uma espécie de texto fundador no calor da hora da abertura de um novo espaço para o fluxo migratório, naquela época a pleno vapor, no sentido da Europa para a América.

Tanto que já no ano seguinte, em 1853, lançou uma segunda edição, esta um pouco mais enxuta, de 40 páginas. Acontece que a primeira versão trazia a reprodução de algumas cartas que teria recebido dos primeiros colonos já instalados na colônia, e que dela falavam muito bem. Na segunda, essas correspondências foram suprimidas, mantendo apenas o relato elaborado por Kleudgen.

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Essa supressão inclusive alimentou, ao longo do tempo, uma desconfiança: de que talvez, no afã da propaganda que fazia, e a fim de parecer mais convincente, Peter pudesse ter ele próprio forjado as tais cartas. O que, nas brumas do tempo, nunca ficou claro. De todo modo, restava patente que Kleudgen descrevia com muito entusiasmo e confiança as potencialidades da nova colônia, por conta das condições gerais de localização e dos recursos naturais de que dispunha, em termos de água e de solo fértil.

E é muito provável que seu discurso tenha de fato sido bem acolhido entre potenciais emigrantes, fazendo-os se decidirem, naquele momento, por se mudar para o Sul do Brasil e iniciar uma nova vida.

Esse livro elaborado por Peter Kleudgen, ainda que ostente inegável e inquestionável importância histórica para Santa Cruz, em especial, e para todo o projeto de colonização alemã no Sul do Brasil (é um dos raríssimos relatos de propaganda com tal meticulosidade), nunca foi publicado em tradução no Brasil.

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O professor e historiador Roberto Radünz, atualmente vinculado à Universidade de Caxias do Sul (UCS), comenta que conhece uma única tradução, inédita em publicação. Esta teria sido feita por Roberto Steinhaus, por muitos anos responsável pelo Arquivo Histórico do Colégio Mauá, quando este funcionava na Rua Borges de Medeiros, no Centro. É uma preciosidade que ainda espera por ser publicada.

Sua missão era selecionar as pessoas que viriam para a região

O relato de autoria de Peter Kleudgen leva em conta os mais diversos detalhes e as dúvidas que certamente tinham os potenciais alemães interessados em emigrar para o Sul do Brasil. Como salientam os professores e historiadores Jorge Luiz da Cunha, Roberto Radünz e Olgário Vogt em artigo que elaboraram sobre Kleudgen, este, por contrato com a Província, deveria cuidar pessoalmente da seleção dos colonos em Hamburgo. Isso significa que o perfil das diferentes pessoas ou famílias que emigraram para Santa Cruz foi por ele estabelecido e definido.

O próprio agente ganhou um lote na Alte Pikade

De um tempo muito anterior ao advento da fotografia, e em que rostos só ficaram conhecidos a partir de pinturas, desenhos ou gravuras, não ficou nenhum registro conhecido de como era a fisionomia de Peter Kleudgen. Assim, sua imagem é uma incógnita, mas isso de certo modo alimenta ainda mais a aura de mistério ou de impressões em torno de sua personalidade.

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Os professores e historiadores Jorge Luiz da Cunha, Roberto Radünz e Olgário Paulo Vogt, em artigo “Peter Kleudgen: um negociador alemão agenciando colonos para o Brasil”, que chegou a ser apresentado em congresso na Alemanha, levantaram detalhes biográficos.

Kleudgen teria nascido em 10 de dezembro de 1811, em Hamburgo. Seu pai, também chamado Peter, comerciava carvão naquela importante cidade e fora responsável pela primeira linha de transporte a vapor entre Hamburgo e Harburg, fundando depois uma usina de queima de cal virgem. Já sua mãe provinha de uma rica e importante família protestante (enquanto o pai era católico).

Cartão-postal raro divulga o ambiente colonial da Alte Pikade, em Santa Cruz, para o mundo

Peter filho formou-se em engenharia e agricultura, ainda na Alemanha, e chegou ao Brasil antes de 1849. Pretendia estabelecer-se no Rio Grande do Sul, com planos de virar fazendeiro. E, como tal, em 1850 recebeu do governo da Província a concessão de um quarto de légua quadrada na Colônia de Santa Cruz, na Alte Pikade. A essa fazenda ele chamou de Santa Antônia.

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Casou-se em 18 de dezembro de 1851 com Sophie Johanna Fayette, filha de um rico comerciante de Feitoria Velha, São Leopoldo. Peter faleceu em 29 de fevereiro de 1888, em sua cidade natal, na qual se fixara definitivamente.

Ainda no Rio Grande do Sul, em janeiro de 1851 assinara contrato com o governo da Província, em meio ao processo de elaboração de uma lei que regularizasse a colonização das seis léguas em quadro que o império concedera em Santa Cruz. Pelo acordo com Kleudgen, seria colonizada uma légua quadrada com 60 famílias alemãs. Cada família receberia gratuitamente um lote medido e demarcado de 160 mil braças quadradas, desde que se comprometesse a ocupá-lo e cultivá-lo num prazo máximo de dois anos.

Em maio de 1851, Peter Kleudgen já estava na Alemanha, com esse propósito. O primeiro navio com colonos arregimentados por ele partiu em 1o de agosto, e o segundo em 31 de outubro de 1851, ambos navios de R.M. Sloman, como levantaram Cunha, Radünz e Vogt.

Lei das Terras de 1851 motivou assinatura de novo contrato

O artigo dos professores Cunha, Radünz e Vogt aponta que em 4 de dezembro de 1851 surgiu novo elemento a nortear projetos de colonização no Rio Grande do Sul. Naquela data, o governo provincial promulgou a lei no 229, dispondo sobre a infinidade de terras ainda devolutas.

Essa lei estabeleceu a demarcação e a medição das terras devolutas na província. Autorizou a contratação de agentes na Europa para promoverem a imigração alemã; determinou a distribuição gratuita de lote de terras de cem mil braças quadradas na Colônia de Santa Cruz a colonos casados, viúvos com filhos ou solteiros para que se casassem na província; isentou os imigrantes das despesas de transporte do porto de Rio Grande até as colônias e estabeleceu o suprimento inicial de ferramentas e de sementes; financiou a propaganda na Alemanha para convencer pessoas a emigrar e concedeu lotes nas colônias que se fundassem, entre outros itens.

A partir da nova lei, o governo provincial e Kleudgen firmaram novo contrato em 15 de dezembro de 1851, pelo qual este se comprometia a atrair até 2 mil colonos num prazo de dois anos à Colônia de Santa Cruz. Ou seja, pode-se inferir que em pouco tempo Kleudgen fora o responsável direto e principal pela seleção (com seus critérios e o perfil que buscava) dos colonos que chegaram, em grande número, à região. Fora ele, na Europa, o interlocutor direto para a ocupação das diversas picadas.

Essa exclusividade e preferência que detinha alimentaram, claro, animosidade contra ele de parte de outros agentes de colonização. Mas não resta dúvida de que sua atuação foi fundamental, e talvez decisiva, para Santa Cruz ter assumido o perfil socioeconômico que efetivamente ostenta.

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Cartas enviadas da colônia

Em seu artigo, Cunha, Radünz e Vogt enfatizam que o contrato e o decreto provincial que nomeara Peter Kleudgen como agente colonizador na Europa perdera sua validade em novembro de 1854, isto é, três anos após a assinatura. E não foi mais revalidado pelo então presidente da província do Rio Grande do Sul, João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (1810-1906), que, aliás, empresta seu nome a município
do Vale do Rio Pardo e que fora uma nova frente de colonização ao norte da Colônia de Santa Cruz.

Em 1858, Kleudgen retornou em definitivo para Hamburgo, para ali se dedicar a outros negócios. Sua fazenda Santa Antônia, localizada no meio do território original da Colônia de Santa Cruz, acabou sendo dividida em 24 lotes coloniais, vendidos por seus procuradores a partir de 1859.

Como lembram os historiadores em seu artigo, “Da ação política de Peter Kleudgen permaneceram como legado os colonos por ele arregimentados na Alemanha e instalados na Colônia Santa Cruz”. E, ao que tudo indica, teve em posse cartas de alto valor histórico que lhe haviam sido enviadas por alguns dos primeiros imigrantes. Na edição de seu pequeno livro em 1852, assegurou que havia recebido 63 cartas, em sua ampla maioria enaltecendo o acerto da decisão de emigrar; oito destas ele publicou no livreto. Todas foram enviadas em novembro e dezembro de 1851, ou seja, na iminência de dois anos desde a chegada dos pioneiros, em 19 de dezembro de 1849. Uma delas, de 16 de dezembro, foi remetida por Marei Elisabeta Bender para Peter Bender.

Em 21 de dezembro de 1851, o colono Peter Schneider escreve para o alcaide Natz, de Ritzenhagen bei Regenwalde in Pommern: “Aqui é muito melhor do que lá em cima, na América. Vieram alemães de lá para cá, porque só vegetavam, eram enganados e roubados; por isso não emigra para a América do Norte e vem para cá, onde o governo te protege de todas as patifarias e te auxilia eficientemente. (…) Não troco com nenhum agricultor alemão, por mais rico que seja. Aqui não entra funcionário em nossa casa para dizer: ‘escuta, paga mais!’ Não, aqui até recebemos dinheiro do governo, e não há algum grande senhor que nos ordene: ‘hoje quero isso, amanhã aquilo!’ Vivo agora livre e bem como muito senhor lá, e não é qualquer um que deixo entrar em minha casa.”

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