Um projeto de pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) analisa o que os sonhos dos profissionais da saúde têm a dizer sobre o estado emocional deles. O estudo conduzido por duas professoras do Instituto de Psicologia é voltado aos trabalhadores na linha de frente do combate à Covid-19. A pesquisa no Rio Grande do Sul é realizada em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
De acordo com a professora do Instituto de Psicologia da Ufrgs e pesquisadora, Rose Gurski, o estudo investiga os efeitos sociopolíticos nos sonhos em tempos de pandemia. Com referencial teórico de psicanálise e orientada pela perspectiva de que os limiares entre psicologia social e psicologia individual são muito tênues, a pesquisa também foi inspirada pelo livro Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt (2017).
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“Passamos a recolher os sonhos de profissionais da saúde e da educação como uma via de investigação do mal-estar atual. Sabe-se que, frente ao novo contexto trazido pela pandemia, áreas vinculadas à saúde e à educação estão ainda mais fragilizadas do ponto de vista da saúde mental”, explica Rose, que é uma das coordenadoras do estudo.
A escolha das áreas se deu pelos profissionais estarem ainda mais vulneráveis nos tempos pandêmicos, pois já vinham sofrendo com a precarização das políticas públicas. Com os desdobramentos da pandemia ainda em 2020, o impacto da situação sanitária se tornou ainda mais evidente no cotidiano dos profissionais da saúde, especialmente aqueles atuando na linha de frente.
“O medo de estar tão próximos de uma carga viral elevada, falta de equipamentos de proteção adequados, a demora da compra e posterior demora do cumprimento do calendário de vacinação, o contraste entre as UTIs lotadas e as pessoas não respeitando o isolamento social, o medo de infectar familiares ao retornar das jornadas exaustivas de trabalho, entre outras questões. Fica evidente que são inúmeros os fatores que culminam em um intenso sofrimento psíquico”, explica a professora Cláudia Perrone, que também coordena o estudo.
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A partir do agravamento da situação da pandemia, com as intubações se tornando mais frequentes, as pesquisadoras apontam a experiência dos profissionais de saúde como torturante e as condições de trabalho como traumáticas. Segundo Rose Gurski, atualmente, com o colapso do sistema de saúde e o aumento do número de mortes, está insuportável. A isso se soma a ausência do reconhecimento, por parte de muitas autoridades, da gravidade da tragédia que estamos vivendo, acrescenta.
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O estudo começou em março de 2020, no início da pandemia, por meio de material de divulgação nas redes sociais convidando profissionais a participarem. A partir de abril do ano passado, o projeto passou a receber os relatos com sonhos dos profissionais através do e-mail, WhatsApp e telefone. Cada pessoa narrava seus sonhos por escrito ou por voz para um dos pesquisadores. Até o momento foram coletados cerca de 1,5 mil sonhos.
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Os pesquisadores identificaram que os sonhos dos profissionais da saúde se aproximam dos chamados sonhos traumáticos, similares aos analisados por Sigmund Freud em soldados que haviam voltado do front na 1ª Guerra Mundial. “Em muitos sonhos desses profissionais, vemos que são povoados por imagens de tarefas habituais de sua vida laboral, ou seja, a expressão da dimensão traumática vivida no dia a dia se apresenta nas marcas do trabalho psíquico noturno”, relata Rose Gurski.
A narrativa do sonho e as associações tecidas pelos participantes do estudo apontam uma intensa vivência traumática. A professora explica que os sentidos disso tudo só podem ser construídos pelo próprio sonhador. Em situações críticas de desamparo e angústia ou em momentos de catástrofes sociais e intensas perdas pessoais ou coletivas, os sonhos funcionam como uma proteção para o psiquismo, exposto aos efeitos desses eventos.
Portanto, eles podem registrar o que marca a vida de uma pessoa, seja a dor ou o prazer. “De março de 2020 até agora, março de 2021, encontramos nos processos oníricos justamente as marcas dolorosas que ficaram registradas para os sujeitos”, ressalta.
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A tradução dessas imagens permite uma abertura para possibilidades tanto de compreensão quanto de ação. Participantes do estudo afirmaram que apenas compartilhar o seu relato já era um fator tranquilizante. Outros profissionais passaram a prestar mais atenção nos sonhos por causa da pesquisa, construindo sentido e compreensão para o que haviam sonhado. Dessa forma, o projeto foi simultaneamente uma pesquisa e uma intervenção – os sonhadores ganharam um espaço de fala onde receberam ajuda para encontrar palavras para nomear sua dor e seu sofrimento.
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Segundo as professoras do Instituto de Psicologia, no momento inicial da pandemia, o conteúdo dos sonhos mostrava imagens comuns marcadas pelo medo da morte, como a volta aos lugares da infância e o reencontro com pais e parentes.
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Já na metade do ano passado, diferentes sonhadores mostraram um esforço de adaptação ao novo normal, sonhos com o trabalho, reencontro com chefes e colegas, com as múltiplas tarefas em casa, trabalho e filhos. Também estava presente o medo de sair de casa sem máscara e rupturas espaço-temporais em que os sujeitos se sentiam perdidos e até mesmo estavam em férias.
Com o aumento da contaminação pelo vírus e a intensificação das mortes no fim do ano, surgiram outras modulações nos sonhos. Apareceram imagens de destruição – cidades conhecidas dos sonhadores se encontravam destruídas nas imagens. Havia lugares sem lei, distopias como a do filme Mad Max, dissolução de rostos, corpos despedaçados e perda e desaparecimento de pessoas queridas.
*Colaborou o jornalista Pedro Garcia.
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