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‘Perifericu’ é o Melhor Filme do 3º Festival Santa Cruz de Cinema

“Eu ando tão cansada, que faz tempo que eu não sonho.” É com este desabafo de Luz (Vita Pereira), olhando nos olhos do espectador, que se inicia o curta “Perifericu”, grande vencedor do 3º Festival Santa Cruz de Cinema. O prêmio foi anunciado em transmissão ao vivo pela internet na noite desta sexta-feira, 11. Veja todos os premiados no fim da matéria.

E é esse o tom do curta-metragem que receberá em casa o Troféu Tipuana de Melhor Filme neste ano: um manifesto. Um grito que não é grito, mas ecoa e pulsa na batida de um funk ou numa conversa com Deus. Uma convocação necessária a que se reconheçam as identidades, rostos e vozes de quem tantas vezes é reduzido a estereótipos.

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A direção é de Nay Mendl, Rosa Caldeira, Steffany Fernanda e Vita Pereira, que também assinam o roteiro, junto com Winnie Carolina. O elenco principal é formado por Ingrid Martins (Denise) e Vita Pereira (Luz). Enquanto na produção audiovisual em geral a presença de transexuais e travestis ainda é exceção, em “Perifericu” é quase regra: há predominância de LGBTQ+ (sigla para Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e outros) na tela e nos bastidores. O curta já foi exibido em mais de 60 festivais e recebeu 24 prêmios – contando o desta noite.

O filme conta a história de Luz e Denise, moradoras da Ilha do Bororé, em Grajaú, região periférica no extremo sul de São Paulo. A travessia de barca para ir e voltar da ilha é por si só simbólica. Numa sociedade em que é desafiador viver na periferia, ou ser negro, ou ser mulher, ou ser LGBTQ+, ser tudo isso ao mesmo tempo impõe desafios que escapam à compreensão de quem não vive essa realidade na pele.

E por isso “Perifericu” é um filme necessário, para nos chamar à reflexão, para reconhecer o lugar do outro, a sua identidade, os seus direitos. O monólogo poético do final é uma convocação urgente a refletir sobre o pensamento predominante e sobre as ações nossas de cada dia.

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Na primeira edição do festival, em 2018, “O Vestido de Myriam”, do carioca Lucas Rossi, foi escolhido Melhor Filme da mostra competitiva nacional. Rossi participou da edição de 2020 com “Atordoado, Eu Permaneço Atento”, que ficou com o prêmio de Melhor Montagem. Em 2019, o grande vencedor foi “Nova Iorque”, do pernambucano Léo Tabosa. Na edição deste ano, o diretor participou do festival com “Marie”, que levou os troféus de Melhor Ator, para o brasiliense Rômulo Braga, e de Direção de Arte, para a também pernambucana Isabela Stampanoni. Ainda nesta edição, Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon foram reconhecidos com o Prêmio Tuio Becker e Léa Garcia foi a atriz homenageada.

Neste ano, além dos troféus Tipuana, foram distribuídos aos vencedores da mostra competitiva R$ 14 mil em dinheiro – o Melhor Filme receberá R$ 3 mil e os demais premiados R$ 1 mil cada. A premiação em valores foi um diferencial desta edição. Segundo os organizadores, o objetivo era apoiar os produtores audiovisuais, em um ano difícil para quem trabalha com cultura, por meio da distribuição de recursos que seriam empregados no evento presencial, mas acabaram economizados, com as restrições da pandemia.

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Festival se reinventa e amplia público

Cinco horas e sete minutos de filmes distribuídas entre os 18 selecionados para a mostra competitiva do 3º Festival Santa Cruz de Cinema nortearam debates da última semana nas mais diversas regiões do país. Neste ano, 603 filmes de todos os estados brasileiros competiram por uma vaga entre os finalistas. O Festival Santa Cruz de Cinema é uma realização do Serviço Social do Comércio (Sesc) de Santa Cruz do Sul, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e da Pé de Coelho Filmes. O patrocínio é da JTI e da Unimed Vales do Taquari e do Rio Pardo e o apoio é da Proeza e da Gazeta Grupo de Comunicações.

O formato online desta edição, em função da pandemia de coronavírus, se por um lado não permitiu a convivência presencial entre os profissionais e admiradores do cinema, por outro possibilitou acesso ainda mais amplo do público. Foram quatro dias de debates pelas páginas do Facebook do Festival Santa Cruz de Cinema e do Portal Gaz, além da live da premiação, nesta sexta à noite.

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Durante toda a semana, os filmes selecionados estiveram disponíveis gratuitamente no site do festival e até a tarde desta sexta-feira foram assistidos por mais de 3 mil pessoas  – quem não conseguiu assistir ainda terá este sábado e domingo para conferir as produções em festivalsantacruzdecinema.com.br/filmes. O evento cumpre, portanto, o propósito de democratizar ainda mais o acesso à arte das telonas e de promover a troca de ideias entre profissionais, estudantes e espectadores.

Para Roberta Pereira, gerente do Sesc em Santa Cruz do Sul, o balanço destes cinco dias de festival é positivo. “Terminamos o 3º Festival Santa Cruz de Cinema com uma sensação de felicidade, de dever cumprido e de muito orgulho pelo que conseguimos fazer neste ano tão difícil, pelo número de realizadores, de filmes e de estados que conseguimos mobilizar. Isso mostra que o nosso festival já tem um peso e também a necessidade de manter eventos como esse. Acertamos em ter mantido o festival, nos reinventamos e nos adaptamos.” Roberta ainda destaca que a equipe já trabalha na organização do próximo festival, que deve ocorrer de 25 a 29 de outubro de 2021.

O júri

Marcus Mello é programador, pesquisador e crítico de cinema. Entre 2013 e 2016 foi coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria da Cultura de Porto Alegre e diretor da Cinemateca Capitólio. Atualmente integra a equipe da Cinemateca Capitólio.

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A seleção de curtas apresentada neste ano pelo festival é de grande qualidade, e chama  atenção pela diversidade de propostas e pelo viés político contundente de muitos títulos apresentados. Como não poderia deixar de ser, a questão da representatividade e o surgimento de novas vozes também é algo que se destaca. Tais características foram valorizadas pelo júri de premiação, que teve a difícil tarefa de indicar os vencedores de cada categoria entre tantos títulos tão qualificados. É muito importante ver o quanto o cinema, e a arte em geral, mesmo sob ataque do atual governo, têm conseguido resistir e oferecer respostas tão contundentes ao atual estado de coisas. Mais do que objetos estéticos, estes filmes sobreviverão como documentos destes tempos sombrios.

Clarice Saliby é documentarista e atua no mercado cinematográfico em diversas funções. Mestre em Comunicação na Escola de Comunicação da UFRJ com pesquisa no campo do cinema documentário, atualmente ministra aulas em cursos de roteiro e de documentário.

A seleção do festival deste ano apresentou filmes que trazem, além de discussões importantes no campo social, uma inventividade estética admirável. O diálogo com outras linguagens artísticas, a quebra do modelo de narrativa tradicional, a pesquisa estética são elementos que chamam atenção nas obras. A diversidade se faz presente não apenas no tema, mas também na forma. O ritmo de montagem alinha-se ao universo particular de cada filme. Assim como as paletas de cores, sons e trilha sonora. Muitos filmes trazem propostas estéticas disruptivas e são um alento em tempos tão sombrios.

Camila de Moraes é jornalista. Seu longa “O Caso do Homem Errado” esteve na seleta lista de pré-selecionados pelo Ministério da Cultura para representar o Brasil e concorrer ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019.

O cinema brasileiro é uma arte que me encanta muito e poder fazer parte do 3º Festival Santa Cruz de Cinema, como jurada ao lado dos meus colegas Marcus Mello e Clarice Saliby, é uma oportunidade incrível. Além de ter acesso às últimas produções feitas em nosso território, é um espaço específico de análise e reflexão sobre essas obras. É um momento dedicado para isto e maravilhos [ter] essa troca, esse aprendizado. As produções que integram a programação deste ano nos apresentam um Brasil urgente com reflexões profundas, desde a questão de acessibilidade, causas LGBTQIA+, estrutura racial, dialogando entre documentário, ficção e animação. De fato, esses realizadores compreendem o poder da arte. Então, meus parabéns para todes, desde os realizadores até os organizadores do Festival, que ainda permanecem acreditando no nosso cinema brasileiro e fazendo revolução por meio da arte.

Quem levou os troféus

Melhor Filme: “Perifericu” (São Paulo, 20 min), de Nay Mendl, Rosa Caldeira, Steffany Fernanda e Vita Pereira
Melhor Filme pelo Júri Popular: “Bochincho” (Rio Grande do Sul, 17 min), de Guilherme Suman
Melhor Filme Gaúcho: “Construção” (16 min), de Leonardo da Rosa
Ator: Rômulo Braga, de “Marie” (Pernambuco, 25 min)
Atriz: Dirce Thomaz, de “Adalgiza” (São Paulo,13 min)
Direção: Victor di Marco e Márcio Picoli, de “O que Pode um Corpo?” (Rio Grande do Sul, 14 min)
Direção de Fotografia: Igor Pontini, de “Inabitáveis” (Espírito Santo, 25 min)
Direção de Arte: Isabela Stampanoni, de “Marie” (Pernambuco, 25 min)
Roteiro: Marco Antonio Pereira, de “4 Bilhões de Infinitos” (Minas Gerais, 14 min)
Montagem: Lucas H. Rossi dos Santos, de “Atordoado, Eu Permaneço” (Rio de Janeiro, 15 min)
Trilha Sonora: Anderson Bardot e Marcus Neves, de “Inabitáveis” (Espírito Santo, 25 min)
Desenho de Som: Marco Antonio Pereira, de “4 Bilhões de Infinitos” (Minas Gerais, 14 min)
Prêmio Tuio Becker: Filipe Matzenbacher e Marcio Reolon

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