“Naquela hora, eu me despedi da minha mãe e do meu pai e pedi desculpas por não conseguir sair. Ali eu ia ficar.” Em meio a gritos aterrorizantes, barulho de vidro quebrando e material do teto despencando, Gustavo Cauduro Cadore, de 41 anos, recorreu à fé. “Pedi em voz alta para Deus me ajudar. Foi quando olhei para a minha esquerda, vi um feixe de luz e era a porta da saída, em meio à fumaça e muitas pessoas.” Morador de Santa Cruz do Sul, o veterinário Gustavo é um dos sobreviventes da tragédia ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria, que completou dez anos nessa sexta-feira, 27.
242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas, em um dos casos mais graves de incêndio na história do Brasil. Porto-alegrense de nascimento, Cadore visitava os primos e tios em Santa Maria durante a infância, e acabou, aos 17 anos, indo morar na cidade. Em 1999, começou a cursar Veterinária. “Concluí a graduação em 2005, fiz mestrado, e, na época em que estava concluindo o doutorado, houve o incêndio na Kiss”, disse ele.
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No dia 26 de janeiro, Gustavo e colegas do curso de Veterinária estavam realizando um churrasco. Ele foi convidado por um dos amigos a ir até a Kiss. “Eu não gostava muito dessa boate. Sugeri darmos uma passada em outra. Mas quando fomos, estava uma fila enorme. Depois, já pela 1h30 do dia 27, fomos até a Kiss e tinha umas cinco pessoas na fila. Larguei meu carro em casa, que era perto, e entramos.”
O veterinário já havia ido umas cinco vezes na Kiss e garante: nunca a viu tão cheia de gente. “Era um dos lugares mais lotados em que fui até hoje. Peguei uma cerveja e falei para um amigo que iria tomar uma e ir embora, não tinha condições de ficar. Depois, encontrei outro amigo e fomos para a área vip”, salientou.
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Cerca de dez minutos depois, começou o incêndio, logo após o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, acender um artefato pirotécnico. Em poucos segundos, uma fagulha alcançou o revestimento de poliuretano do teto do palco e as chamas se alastraram rapidamente. “A banda parou de tocar, olhei pro palco, que estava pegando fogo, e parecia que ia dar pra apagar, achei que iam conseguir controlar o incêndio. Tentaram usar um extintor umas duas, três vezes e não funcionou. Naquele momento já estava começando a esquentar e aí comecei a procurar a saída.”
Quando Gustavo saiu da área vip, o fogo atingiu a parte elétrica. “Deu um estrondo muito alto e ficou tudo escuro, um pânico generalizado, um empurra-empurra muito grande, de tudo quanto é lado. Eu acabei caindo, fui pisoteado e não conseguia levantar. Em um momento, tomei um chute no peito que mudou minha posição no chão. Consegui levantar com apoio das mesas chumbadas”, explicou.
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Quando o morador de Santa Cruz levantou, estava impossível de respirar, devido à fumaça excessiva. E o calor era quase insuportável. Estimativas indicaram que a temperatura dentro da boate chegou a 300 graus. “Parecia que eu respirava fogo. Precisava me manter calmo. Era muita gente buscando a saída, e vi que era muito grave. Pensei que iam morrer de 30 a 40 pessoas, o que eu já achava muita gente. Fui numa porta e estava chaveada, tentei abrir com toda a força e não deu. Pensei que ia morrer ali e me despedi dos meus pais, mas minha fé me ajudou e visualizei uma luz. Me esgueirando, consegui sair.”
Pele soltou-se dos braços
Gustavo Cadore saiu da boate e só se deu conta de que havia sofrido queimaduras graves 20 minutos depois. “Vi que estava queimado quando um rapaz chegou e colocou água nos meus braços. Logo depois, falou: ‘Tá saindo fumaça dos teus braços’. Daí ele colocou mais água e disse: ‘A pele dos teus braços soltou’. Lembro que olhei meio que no escuro da rua e disse que não, era minha camisa que rasguei tentando sair.”
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O rapaz insistiu e repetiu que a pele de Gustavo estava solta, e que ele estava sem camisa. “Olhei contra uma luz e vi que a pele estava solta, presa na palma da mão e no braço.” Ele conta que não sabe onde se queimou. “Só comecei a sentir dor quando cheguei no hospital, quase uma hora depois. Mas acho que acabei me queimando na tentativa de abrir a porta, e na hora que me segurei na grade de ferro que tinha próximo da saída da boate.”
O homem de 41 anos conhecia Santa Cruz pela Oktoberfest. A chegada dele para morar no município foi junto com a pandemia. “Duas semanas depois, fechou tudo”, disse ele. “Santa Cruz é sensacional, muito boa para se viver, organizada e limpa”, afirmou sobre a cidade.
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O estudante do 7º semestre de Medicina da Unisc foi um dos sobreviventes arrolados no processo para depor no julgamento, em dezembro de 2021. Já morando em Santa Cruz, Gustavo Cadore chegou a ir até Porto Alegre, mas acabou dispensado e não falou em plenário. Ele conta que participou de alguns eventos relacionados à Kiss e chegou a dar uma palestra em Alagoas, no ano passado, para bombeiros que trabalham com resgate.
Sobre os desdobramentos jurídicos, ele lamenta a anulação do júri. “Eu acho que é uma palhaçada. Passaram-se dez anos e quando tem, é anulado meses depois. Foram quatro réus, mas tem muito mais pessoas que deveriam estar sentadas no banco dos réus. Quando tu sai de casa, pensa que está indo num lugar seguro, nunca pensa no risco que pode correr. As pessoas pagam imposto pra isso, ter condições mínimas de segurança. Isso é um deboche das leis frente à sociedade. Apoio os pais buscando justiça. Eles estão até hoje buscando uma resposta.”
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