“Nos conhecemos em um barzinho com música ao vivo. Ele era gentil, fazia todas as minhas vontades, aparentava ser uma pessoa boa. Se eu queria ir em um lugar, ele ia. Tudo tranquilo. De repente, tudo mudou.”
O relato de Tayana*, de 33 anos, remete ao início de um relacionamento que, mais tarde, iria mudar e transformar sua vida para sempre. Ela foi perseguida, ameaçada e mantida em cárcere privado pelo seu namorado, de 43 anos, em uma situação que a fez pensar em tirar sua própria vida.
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Tayana foi vítima de um novo crime, chamado de “stalking”. A lei que definiu essa terminologia como delito foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 31 de março. O artigo 147-A do Código Penal (CP) detalha que “perseguir alguém, reiteradamente, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade” é crime com pena de prisão por seis meses a dois anos e multa.
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Em termos brasileiros, o “stalking” significa uma perseguição obsessiva, que interfere na segurança da vítima. Até a sanção do presidente, não havia algo do tipo na legislação brasileira. Casos com características semelhantes eram enquadrados como “perturbação da tranquilidade alheia”. A alteração no CP prevê que a pena pode ser ainda maior se a perseguição for cometida contra criança, adolescente, idoso ou mulher, mediante concurso de duas ou mais pessoas ou uso de arma de fogo.
Em entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, Tayana relatou os momentos de desespero que viveu nas últimas semanas, vítima desse novo crime.
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Clima mudou na Sexta-Feira Santa
A história de Tayana teve início no dia 25 de janeiro. Ela conheceu *Inácio, de 43 anos, em um bar no centro de Amaral Ferrador, cidade que fica a cerca de 50 quilômetros ao sul de Encruzilhada do Sul. De um relacionamento que se mostrava promissor, pouco mais de dois meses depois, a mulher começou a perceber sinais de violência.
“Ele morava no interior e eu na cidade. A partir de um dia, começou a vir armado para minha casa. Eu disse que não queria revólver ali. Aí ele me disse: ‘Já que tu estás me proibindo algumas coisas, vou começar também’”, contou a vítima. Na Sexta-Feira Santa, dia 2 de abril, os dois filhos dela, um de 4 anos e outro de 13, foram almoçar na casa da avó paterna.
“Naquele dia, ele me deu um empurrão na cama e disse que a partir dali iria mudar. Desmaiei, passei mal. Falei que queria ver meus filhos, porque minha ex-sogra mora perto. Ele não deixou, me colocou dentro do carro e começamos a andar. Ali pensei que seria meu fim. Foi muito agressivo com as palavras, gritava muito, dizia que a culpa de tudo era minha. E se seguisse assim, iria dar um sumiço no meu filho pequeno.”
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Com medo, Tayana aceitou a condição de submeter-se ao namorado. Inácio instalou na residência da mulher uma câmera de segurança, com imagem e som, para monitorar o que ela fazia e falava. “Eu não podia mais sair no portão, não recebia ninguém. E ele não queria que eu desse atenção para os meus filhos, que se eu desse quando ele não estivesse, ele saberia e a coisa iria piorar”, explicou.
Na segunda-feira, dia 5 de abril, a mulher saiu com a ex-cunhada e contou o drama que estava passando com o namorado. “Logo, ele me mandou uma mensagem questionando o porquê de eu ter saído de casa, e o que estava acontecendo. Eu respondi que tinha saído para comer um bolo com a minha sobrinha. Aí ele disse que era pra sair com ele para ir comer o bolo.”
Tayana disse então que era para Inácio não procurá-la mais, ficar na casa dele. “Não adiantou. Ele foi atrás de mim. Deixei meu filho pequeno com minha ex-cunhada, ele me colocou dentro do carro e começou as ameaças. Disse que eu só podia estar de brincadeira, que ele ia sumir com meu filho e perguntou se eu queria pagar para ver.”
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Durante aquela tarde, Tayana precisou ir a uma reunião de trabalho. Segundo ela, muitas pessoas lhe falavam para não dar parte do caso na polícia, pois sabiam que o namorado dela era perigoso. “Eu só pensava em aceitar aquilo tudo quieta, porque não iria aguentar se ele matasse meus filhos. As ameaças pioraram. Eu vivia trancada dentro da minha casa, sem poder dar atenção às crianças.”
Cinco preciosos minutos a sós com a mãe
Na sexta-feira, 9 de abril, Tayana externou o desejo de ver sua mãe, que mora em Encruzilhada do Sul. Inácio aceitou, mas com uma condição: que eles buscassem juntos a parente da vítima na casa dela. “Ele não me deixava ir a lugar nenhum sozinha. E sempre dizendo ‘sem gracinha, senão sumo com teu pequeno’”, afirmou a mulher. Já na residência da mãe, abriu-se uma curta janela de tempo sem a presença do agressor.
Esse momento foi fundamental para o início de uma reviravolta no caso. “Quando fomos buscar a mãe, ele me deixou cinco minutos com ela e foi dar uma volta de carro na cidade. Nesse momento, eu disse pra mãe, ‘pelo amor de Deus, me ajuda que não aguento mais’. Falei a ela que pensei em entregar a guarda dos meus filhos e me matar’. Depois, pedi para a mãe agir como se nada tivesse acontecido quando ele voltasse.”
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Os três saíram de Encruzilhada rumo a Amaral Ferrador na tarde daquela sexta-feira. No sábado seguinte, Tayana começou a passar mal. “Eu não me alimentava mais direito, estava nervosa demais, vomitei, meus batimentos chegaram a 130. Aí ele disse que se eu começasse a dar problema, ele levaria minha mãe pra casa e eu não ia vê-la nunca mais”, ressaltou a vítima.
“Eu pedia desculpas, dizia que isso não iria mais acontecer e ele afirmava que a culpada era eu, e que ele iria agora ficar 40 dias sem sair da minha casa. No domingo, levamos minha mãe até a casa dela, e eu só pedia para Deus me dar uma luz, porque eu não aguentava mais.”
O plano para tirar a vítima da cidade
A mãe da vítima logo buscou ajuda na Brigada Militar (BM) de Amaral Ferrador. Na manhã de segunda-feira, 12, Tayana acordou e foi fazer seus relatórios do trabalho. Depois de passar mal novamente, tentou descansar um pouco. Inácio estava dormindo quando a Brigada Militar (BM) chegou na casa, por volta das 12 horas.
“Naquele momento, foi um misto de alívio e medo, tudo junto. Eu atendi a porta e a mulher brigadiana me disse que tudo ia se resolver, e eu falei chorando que ele iria mandar me matar.” Um policial entrou na casa e prendeu o agressor. Os dois foram para a Delegacia de Polícia (DP) de Amaral Ferrador. Em depoimento, o homem de 43 anos relatou que “tudo estava bem”, e que era o ex-marido de Tayana quem estava querendo atrapalhar o relacionamento deles.
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O casal prestou esclarecimentos em salas separadas. “Nós não estávamos bem como ele disse. Eu estava em cárcere privado dentro da minha própria casa. No final, ele acabou sendo liberado antes mesmo de mim da delegacia”, disse a vítima. Tayana relata o medo que teve ao deixar a DP, uma vez que seu agressor estava livre nas ruas da cidade. A partir disso, foi traçado um plano para tirar a vítima da cidade.
Para tentar despistar o criminoso, a Polícia Civil de Amaral Ferrador levaria Tayana até certa altura da rodovia, em direção a Encruzilhada do Sul, onde ela pegaria carona em um outro veículo para seguir viagem. Quando estava finalmente chegando na residência da mãe, ela foi alertada por vizinhos de que o agressor também já se encontrava na cidade. “Ele cruzou pela viatura da polícia. Ficou ligando para minha mãe. Os parentes avisaram que ele estava fazendo a volta na casa dela. Aí fiz uma denúncia na Polícia Civil de Encruzilhada.”
Mesmo com prisão de autor, mulher teme pela vida
Liderados pela delegada Luana Tamiozzo Medeiros, os agentes saíram em buscas pela cidade para localizar o agressor. Tão logo o encontraram, às 16h15 de segunda-feira, 12, lavraram o auto de prisão em flagrante e o encaminharam até o Presídio Estadual de Encruzilhada do Sul. A prisão em flagrante foi convertida em preventiva e o indiciado permanece detido. Ele é um criminoso ligado a uma facção.
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Em razão disso, o temor pela vida de Tayana continua mesmo com a prisão. Neste momento, a vítima permanece escondida e longe dos seus meninos de 4 e 13 anos. “Nunca tinha vivido algo do tipo. Temo pela minha segurança e dos meus filhos. Ele é um homem perigoso, ligado ao crime. Tem muito contato. Eu sumi. A saudade dos meus filhos é demais.”
Ainda assim, ela revela o sentimento de gratidão pela mãe, que buscou auxílio após constatar a sua situação. “A gente se sente impotente, com medo. Eles entram no psicológico, falam que vão fazer mal para os familiares. É muito triste. Eu disse pra mãe que na segunda-feira ela me deu a vida pela segunda vez.”
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos
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