“Americanos são estatísticos, têm gestos nítidos e sorrisos límpidos, olhos de brilho penetrante que vão fundo no que olham, mas não no próprio fundo.” (Caetano Veloso)
O espírito dos Estados Unidos raramente fica claro em visitas rápidas, e menos ainda por notícias, filmes e relatos superficiais. É preciso tempo e experiência real para ter perspectiva e entender mais claramente o povo e a cultura, enraizada ou, por vezes, imposta pelo que chamamos de “jeito americano” (American way). O mesmo, obviamente, se aplica a outros países, especialmente entre as jovens nações das Américas, onde história e tradição ainda não estão solidamente estabelecidas.
Barack Obama, residente de Chicago desde a juventude e primeiro afro-americano presidente dos Estados Unidos, definiu a cidade como um lugar onde praticidade e inspiração existem em harmonia. Uma metrópole que manteve o calor de uma cidade pequena, com um povo que não se importa tanto com origem, passado e crença, focando mais em trabalho e resultados. Eu tive muita sorte de ter Chicago como minha primeira casa na terra do Tio Sam. É um local que representa bem os Estados Unidos, com suas virtudes, benesses, ambições, e também as agruras, problemas e conflitos históricos. Chicago é apelidada de “Cidade dos Ventos”, não pelas rajadas implacáveis do inverno nos Grandes Lagos, mas, dizem, por constantes mudanças de posicionamento dos seus políticos.
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Fundada em 1837, a cidade natal de Hemingway, Walt Disney e Al Capone viu a população explodir na segunda metade do século 19, quando consolidou sua posição de maior entreposto ferroviário dos Estados Unidos. A região metropolitana tem hoje 10 milhões de habitantes e produto interno bruto de 690 bilhões de dólares, a metade do PIB do Brasil.
A estátua de Ceres, deusa romana da agricultura, reina a 200 metros de altura sobre o prédio do Chicago Board of Trade, mais antigo mercado de futuros e opções do mundo. A junta comercial, erradamente chamada no Brasil de Bolsa de Chicago, dita os preços globais de dezenas de bens e mercadorias. Criada originalmente para produtos agrícolas e pecuários como soja, sementes, leite, gado, suínos, etc., incorporou com o tempo outros instrumentos financeiros como taxas de juros, ações, moedas e metais. É o único mercado onde se pode investir em futuros meteorológicos como volume de chuva, neve, furacões e altas temperaturas.
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Por mais que eu estivesse preparado e informado, tive alguns choques inevitáveis durante a adaptação ao país. Um deles diz respeito ao consumismo quase religioso, fomentado por um sistema financeiro voraz, que enxerga mais realização pessoal no acúmulo de bens do que em crescimento intelectual e cultural. A correlação entre riqueza e felicidade não é linear nem proporcional. É, na melhor das hipóteses, fator importante até que se atinja um patamar considerado essencial para a sobrevivência. O que se segue é um platô de relativo contentamento econômico. Apesar disso, somos bombardeados pela falsa premissa de que realização e plenitude são atingidas com fortuna e consumo incontido. Uma sociedade que só visa crescimento econômico precisa, automaticamente, manter o nível de insatisfação em alta e incentivar a demanda baseada em emoção, não em racionalidade. A coação do consumismo é mascarada como liberdade de escolha.
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Outro impacto aconteceu em minha primeira semana no país, envolvendo a polêmica emenda da constituição americana que (des)regula porte e posse de armas, ratificada em 1791 e arraigada na cultura local. Parti cedo para reunião na fábrica de motores da Navistar e, ao chegar no estacionamento, deparei-me com dezenas de carros de polícia, ambulâncias e equipes de reportagem. Momentos antes, um ex-funcionário havia entrado no prédio com duas pistolas, uma espingarda e um fuzil AK-47. Nove pessoas foram fuziladas e cinco morreram na hora. Atentados desse tipo crescem ano após ano. Nos primeiros dez meses de 2021, houve mais de 700 massacres (quatro mortos ou mais) com armas de fogo nos EUA, com 138 incidentes somente em escolas.
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Infelizmente, o Brasil é um dos únicos países que está desenvolvendo política semelhante de escalada armamentista entre a população civil. Nesse aspecto específico, podemos contemplar nosso futuro observando o presente americano. No final do texto citado acima, Caetano Veloso se refere ao nosso país: “Aqui embaixo a indefinição é o regime, e dançamos com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei, entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime”. Ao norte ou ao sul do novo mundo, cada nação a seu modo e com seus contrastes, somos todos tipicamente americanos.
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