Era tarde da noite em meu primeiro dia em Moscou, em 1993. Depois de dois dias de viagem, eu finalmente dormiria, instalado na casa de estudantes da universidade. Alguns minutos depois, acordo com alguém batendo à porta do quarto. Era Renat, um estudante local, curioso para encontrar um brasileiro recém-chegado. Na mão direita, segurava uma foto emoldurada de Pelé ao lado do famoso arqueiro russo Lev Yashin, o Aranha Negra (ou Pantera Negra). Na mão esquerda, uma garrafa de vodca.
Eu não sabia quase nada de russo e ele falava pouquíssimo inglês, mas sua simpatia e aquela foto me convenceram a deixá-lo entrar. Inicialmente, trocamos palavras básicas: Brasil, futebol, Pelé, café. Após alguns copos de vodca, porém, conversávamos normalmente, não lembro sobre o que e nem como.
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Pelé é a maior referência internacional do Brasil. Felizmente, traz sempre uma relação positiva, de simpatia e autoridade. Testemunhei por diversas vezes o brilho nos olhos das pessoas ao falarem nele e a comoção que sua presença causa, mesmo em países onde o futebol não é popular, como na Índia ou nos EUA. Nenhum outro brasileiro teve seu nome completo, Edson Arantes do Nascimento, tão pronunciado por estrangeiros, orgulhosos por sabê-lo de cor. No domingo, dois dias após a morte do brasileiro, o padre da paróquia inglesa que frequento relatou no sermão que vira Pelé no estádio Goodison Park, em Liverpool, marcando um gol contra a Bulgária na Copa de 1966.
O brasileiro soube honrar a fama mundial com humildade e gentileza. Na Alemanha, assisti a uma entrevista em que Pelé destacava sua origem pobre e a luta por justiça dos oprimidos no Brasil. No final, dirigiu sua simpatia aos telespectadores, em inglês e alemão: “To my German friends: mir geht es gut!” (Aos amigos alemães, eu estou bem). É claro que há outros brasileiros ilustres, mas, pela reputação e projeção mundial, nenhum foi maior em nossos 522 anos de história. Isso se torna ainda mais significativo por Pelé ser um negro nascido em uma sociedade marcada por racismo e preconceito, que infelizmente não desapareceram com a abolição da escravidão.
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No Brasil – e no Brasil somente! – não falta quem procure manchar uma brilhante história pessoal como a de Pelé. Como em outros casos, a cultura escravagista e elitista, usando subterfúgios para encobrir o racismo e a intolerância evidentes, não aceita que alguém com origem humilde ou pele escura possa chegar a uma posição de destaque. No caso de Pelé, trazem à tona de forma superficial o reconhecimento de paternidade de Sandra, uma das suas filhas. Uma pesquisa mais detalhada revela que a questão só acabou na justiça graças à ganância e à deslealdade do advogado e do marido de Sandra, em um caso que, de outra forma, poderia ter sido resolvido pelo exame de DNA e sem litígio, como aconteceu com Flávia, filha de Pelé com uma santa-cruzense.
Seus dribles jamais humilharam os adversários, que até se rendiam ao talento e à magia do Rei. Tarcisio Burgnich, zagueiro italiano encarregado de marcar Pelé na final da Copa de 1970, contou: “Antes da partida, eu mentalizei que ele era como eu, de carne e osso. Eu estava errado”. A grandeza de Pelé permanecerá. O mineiro foi o primeiro e, de longe, o maior astro do esporte bretão. Pelé fez o mundo sorrir com sua alegria e seu talento, colocando o futebol em um patamar ímpar de popularidade.
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Algumas vezes, em apresentações e reuniões, usei uma singela história que ouvi de Pelé. Em seu primeiro trabalho, como engraxate, ele oferecia seus serviços no entorno de sua casa, em um bairro pobre da cidade. Quase todos que passavam usavam chinelos, e o menino de 6 anos notou que, por ali, teria poucos clientes. Passou então a frequentar a estação ferroviária, onde havia muita gente calçando sapatos. Ao atender o primeiro cliente, foi elogiado pelo trabalho e, em seguida, ao ser perguntado sobre o preço, Edson se deu conta de que não havia pensado em quanto cobrar. A lição ficou para seu futuro nos negócios: esteja onde estiverem seus clientes e conheça o seu valor.
Guardo com carinho a camisa canarinho autografada por Pelé, como homenagem pelas portas e sorrisos que seu talento espetacular e seu carisma abriram para mim e abrem para os brasileiros no exterior. A magia de seu futebol, a diplomacia de palavras simples, a admiração e o reconhecimento mundial seguirão fazendo com que Pelé jamais perca a majestade.
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