Michelangelo Merisi (1571-1610), pseudônimo ”il Caravaggio”, veio ao mundo em Milão, alguns anos após a morte de seu xará e gênio do Renascimento Michelangelo Buonarrotti (1475-1564). A intenção dos pais não era homenagear o artista florentino, mas sim o arcanjo Miguel, cuja festa coincidiu com o nascimento do filho.
Tentando escapar da peste bubônica que assolou o norte italiano, a família se transferiu da tumultuada Milão para a vizinha Caravaggio quando o futuro pintor tinha 5 anos. O menino, ainda assim, perdeu o pai, o avô, os tios e quase todos os homens da família. Um golpe duríssimo para uma personalidade em desenvolvimento, mais ainda em uma sociedade fortemente patriarcal e católica como a Lombardia do século 16.
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A influência de São Carlos Borromeu, com um estilo dramático, carismático e piedoso, foi fundamental na formação do pintor. O naturalismo realista, característica predominante na obra revolucionária de Caravaggio, estava alinhado com a vida e a preferência artística do arcebispo de Milão.
Em 1592, Merisi se mudou para Roma, como fazia a maioria dos artistas da época. Havia mais de 2 mil deles entre a população de 100 mil pessoas na cidade eterna, ávidos pela demanda artística da cúria e da nobreza romana. Apesar da riqueza cultural, Roma era extremamente violenta, fator que alimentou a natureza impetuosa e colérica de Caravaggio.
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Assim como o onipresente contraste entre luz e sombra em sua obra (chiaroscuro), Caravaggio teve uma vida intensa, oscilando entre o sublime artístico e o submundo de contravenções e crimes. Ele colecionou detenções e teve uma condenação à morte por um assassinato em Roma, razão pela qual escapou da cidade em 1606. Era um homem perigoso, encrenqueiro e de difícil trato. Por outro lado, a arte única, sedutora e inesquecível relegava desvios de conduta a um segundo plano.
O artista passou a maior parte da vida à margem da sociedade. Cercado por violência e pobreza, parecia se autossabotar cada vez que se aproximava de círculos mais nobres. Como modelos para as pinturas, escolhia pessoas simples, mendigos e prostitutas. Uma espécie de antítese do Michelangelo renascentista e suas representações angelicais. Faleceu de forma humilde e em circunstâncias obscuras aos 38 anos, entre Nápoles e Roma, durante uma das inúmeras fugas.
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Mesmo tendo observado as técnicas dos mestres que o antecederam, Merisi foi um autodidata, desenvolvendo o próprio método empiricamente. Talvez essa tenha sido uma vantagem, pois não se viu inserido em uma escola específica e, assim, teve absoluta liberdade na formação do estilo. Considerado fundador do naturalismo moderno, o lombardo influenciou pintores como Rubens, Velásquez, Murillo, Vermeer, Rembrandt, Delacoix, Manet, Goya e dezenas de “caravaggistas” por toda a Europa. Celebridades contemporâneas, como Pablo Picasso (1881-1973) e o cineasta Martin Scorsese (1942-), se disseram inspiradas pela dramaticidade da obra de Caravaggio.
Quase sempre por casualidade, circulei por lugares que marcaram a vida do pintor – Milão, Caravaggio, Roma, Nápoles, Sicília, Malta –, assim como em igrejas e museus que abrigam obras dele na Europa e nos Estados Unidos. Em cada local, observei o realismo feroz, o contraste entre luz e sombra e, acima de tudo, a riqueza de detalhes, significado e vivacidade que ofuscam as obras em redor. Estudar Michelangelo Merisi e entender a realidade temporal tornou-se inevitável.
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Uma das normas de São Carlos Borromeu diz respeito à pia batismal na entrada das igrejas. Já no final da vida, Caravaggio perguntou qual era a finalidade da água benta. Ao ouvir que seria para amenizar pecados mais leves (veniais), exclamou: “É inútil para mim. Meus pecados são sempre mortais”. O artista tinha a sombria convicção de que sua alma dificilmente seria salva. As espetaculares pinturas, contudo, falaram mais alto. A propósito, sem a temeridade e o ultraje que pautaram sua vida, teria sido ele capaz de criar obras tão divinas, impactantes e revolucionárias?
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