Partindo de Tarifa, na costa espanhola, atravessei com a família o mítico estreito de Gibraltar. Uma hora de navegação entre os dois pilares de Hércules separa dois continentes e duas culturas que, por vezes de forma pacífica e seguidamente com conflitos e invasões, acabaram influenciando-se mutuamente. Ao desembarcar, em poucos minutos já tínhamos interagido com os simpáticos nativos, conversa que revelou um excelente guia para caminhar conosco pela histórica cidade.
Fundada pelos fenícios, oito séculos antes de Cristo, Tânger foi colônia romana e, por estar no encontro do Mediterrâneo com o Atlântico, foi palco de disputas ao longo da história. Por um lado, tensões provocaram um encontro de civilizações. Por outro, causaram destruição, êxodo e sofrimento. Após tomar Ceuta no início do século 15 (enclave ibérico na África até hoje), Portugal finalmente conquistou Tânger, em 1471. No século 17, as colônias de Tânger e Bombaim (hoje Mumbai, Índia), foram presenteadas à Grã-Bretanha como dote no casamento da princesa portuguesa Catarina de Bragança com o Rei Charles II.
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O monarca britânico administrou muito mal a cidade, que acabou com meros 700 habitantes civis. Em 1684, o sultão do Marrocos a encontrou abandonada e semidestruída pelos britânicos e repopulou o local com berberes do Magrebe (noroeste africano), que, daí em diante, a defenderam dos constantes ataques espanhóis. Pela localização e natureza cosmopolita, Tânger foi refúgio de muitos exilados, artistas, escritores e aventureiros. Um deles foi o herói de dois mundos Giuseppe Garibaldi, que se refugiou na cidade por vários meses em 1849. No início do século 20, Tânger foi convertida pelos franceses em zona internacional e paraíso fiscal, até ser retomada pelo Marrocos em 1956.
O vasto interior da antiga fortificação portuguesa (Kasbah) mostra a influência das culturas que ali habitaram, em um labirinto comercial e residencial de vielas estreitas onde, para visitar o vizinho da frente, basta pular de uma janela para a outra. A Grande Mesquita é um livro aberto, com complexa história e impressionante arquitetura. O local foi templo romano, tornou-se mesquita com a chegada dos árabes, catedral com os europeus e é mais uma vez o principal templo islâmico desta que é hoje a segunda cidade do Marrocos, com quase um milhão de habitantes.
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Outro aspecto imperdível é a culinária, deliciosa amálgama de sabores árabes, berberes e mediterrâneos. O nome da cidade, aliás, está docemente eternizado na tangerina, fruta originária dali. A combinação ímpar de arquitetura e tradição também tornou Tânger cenário de filmes, como 007 Contra Spectre e A Identidade Bourne.
O Brasil tem influência marroquina desde a chegada dos portugueses. Em 1769, temendo o avanço dos árabes, Portugal evacuou a Fortaleza de Mazagão, no litoral marroquino, transferindo os habitantes para onde está hoje o Estado do Amapá. Mais tarde, a Amazônia também foi o destino escolhido por judeus marroquinos que fugiam das perseguições antissemitas. O município de Mazagão, no Amapá, celebra anualmente a festa de São Tiago, um dos maiores espetáculos de teatro a céu aberto do país, lembrando a guerra entre cristãos e árabes que culminou na transferência do assentamento marroquino para o Brasil.
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Tânger foi marcada ao longo dos séculos por conflitos religiosos, políticos e culturais, alternando avanços em momentos de união com reveses nos momentos de tensão e hostilidade. O Brasil por vezes vive situação semelhante, contaminado nos últimos anos pela discórdia extrema, resultando em esforços e oportunidades desperdiçados, que sacrificam o desenvolvimento e o bem-estar da maioria da população. É fundamental lembrar que de nada adianta atacar o contraditório com divisionismo, ódio e fake news, seja de que lado for. Nas palavras de Martin Luther King: “A escuridão não afasta a escuridão, somente a luz pode fazer isso. O ódio não afasta o ódio, somente o amor pode fazê-lo.” Fica a saudação e o voto árabe de paz que ouvimos tantas vezes na visita a Tânger: As-salaam Aleikum.
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