Como nas demais noites, a terceira e última noite da Mostra Competitiva Nacional do Festival Santa Cruz de Cinema trouxe muita variedade em formas e conteúdos nos seis curtas apresentados. A sessão foi aberta com Ser Feliz no Vão, um potente ensaio visual dirigido pelo carioca Lucas H. Rossi. Usando apenas imagens de arquivo, o realizador estrutura seu discurso sobre racismo, ocupação de espaço urbano e segregação; com uma articulação pela montagem alinhada ao princípio eisensteiniano da soma de ideias que levam a uma terceira ideia, o realizador mescla elementos aparentemente díspares em favor de sua construção.
A retórica de que o negro deve ocupar os espaços na sociedade que lhe são negados, ao lhe ser atribuída a condição de marginalidade, é corroborada por falas dos anos 1980 ou 90, espantosamente cândidas e sem rodeios, de jovens brancos da elite carioca: as praias deveriam ter acesso cobrado, que “esse pessoal” deveria ficar nos seus bairros de origem, que iriam comer frango com farofa e emporcalhar a orla. E, no entanto, os trens se movem em busca de um lazer que, para horror da elite higienista, não é mais nem nunca mais será exclusivo deles.
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Recorrendo, por sua vez, ao registro ficcional, mas também circunscrito à fundamental temática do racismo, Você tem Olhos Tristes, curta paulista dirigido por Diogo Lopes, traz uma sequência de episódios anedóticos, inscritos na lógica de um racismo estrutural que se manifesta não só por ataques furibundos, mas por gestos e juízos cuja sutileza superficial não exclui o componente racista arraigado nas profundezas do subconsciente dos indivíduos.
Então, temos o idoso que suspeita que o entregador negro de comida lhe esteja roubando e acaba por ameaçá-lo com uma faca; o episódio leva não à punição do agressor, mas sim à suspensão do trabalhador do aplicativo; o amigo entregador branco que segue ativo e não vê seus próprios privilégios; a tia da namorada branca que lhe pede pra providenciar maconha por supor que provavelmente ele seja ou tenha amigos no tráfico, e a própria namorada que, a exemplo dos colegas da protagonista de Desvirtude, não enxerga as agressões como um problema real.
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A Destruição do Planeta Live, dirigido pelo baiano Marcus Curvelo, é uma mudança radical na trajetória do realizador: se, antes, Curvelo enfrentava o mundo e seus dilemas com ironia, aqui há um senso de ruptura, de desesperança absoluta. Seu personagem parece um passo além do também desesperançado personagem de Desencanto: se aquele ainda estava num ponto de se afligir com a solidão, este já não vê mais caminhos. É um curta cuja potência está no seu alinhamento com um estado de espírito devastado, de fácil identificação.
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Florêncio Guerra e seu Cavalo, curta gaúcho dirigido por Guilherme Suman, prossegue a retomada e renovação do “cinema de bombachas” empreendido pelo realizador. Sem grandes ousadias formais, o curta busca um tom mais reflexivo e intimista, em relação ao anterior Bochincho. O outro gaúcho da noite, Review, dirigido por Tyrell Spencer, junta-se a A Destruição na seara da autoficção; a história de um relacionamento abusivo, relembrado por imagens domésticas e pela memória do abusador, desperta questionamentos e uma sensação amarga, de dor e trauma.
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Por fim, Inabitável, curta pernambucano dirigido por Matheus Farias e Enock Carvalho, exibido no festival de Sundance, é um drama sobre uma mãe em busca de sua filha trans desaparecida. A ameaça paira sobre os ombros de todos e é bem conhecida, num país que mata sistematicamente sua população LGTBQIA+. O mundo em que não se permite a alguém que seja quem é não é, enfim, um lugar onde se possa estar. A cena final conclui o curta e o Festival com uma nota de esperança: a luz âmbar, banhando a filha que volta para levar a mãe a outro lugar, que seja habitável: o sorriso delas e a esperança nesse retorno são um otimismo de sonho com esse lugar melhor, para o qual, como a moça diz, “a gente tá atrasada”.
Pedro Guindani é produtor, roteirista e diretor em cinema e televisão.
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