É claro, jamais saberemos que diabos Glauber Rocha andaria aprontando nesses tempos frenéticos da vida brasileira; entretanto, nessa quarta-feira, 1º, na segunda noite da Mostra Competitiva Nacional do Festival Santa Cruz de Cinema, deu pra ter uma ideia: Copacabana Madureira, dirigido por Leonardo Martinelii, faz um apanhado mordaz e grandiloquente, à maneira do cinema-novista baiano, de um Rio de Janeiro que faz jus ao epíteto de “purgatório da beleza e do caos”.
Ninguém escapa: nem as fake news com mamadeiras e kits de doutrinação, nem os “tiozões do zap” que consumiam tais notícias como maná no deserto, nem a esquerda cirandeira que queria barrar o avanço ultraconservador à base de hashtags e karaokê, nem a religião que se deixa usar como força motriz do avanço neofascista, nem a autoindulgência e o ufanismo cariocas, muito menos a ponta de lança do autoritarismo à brasileira: a polícia, cuja brutalidade reiterada contra a população preta e pobre é mostrada, numa curva que faz o filme passar do sarcasmo para a denúncia brutal e contundente. Um filme a se ver e rever, com uma voz única e potente sobre o turbilhão nacional.
Depois da intensidade do curta carioca, seguimos para o – ahn – desencantado Desencanto, do gaúcho Richard Tavares. A justaposição entre os dois filmes é interessante, por serem complementares: se, no primeiro, vemos um apanhado geral do zeitgeist, aqui vemos os efeitos de uma época delirante sobre o indivíduo: em meio a tudo isso, que resta das relações humanas? Que importa a solidão, a sensação de estar deslocado de tudo e de todos? Em um tratamento intimista e sutil, quase simetricamente oposto ao curta-metragem anterior, Desencanto acaba por apontar na mesma direção: um grande ponto de interrogação, uma esfinge que nos ameaça, questiona e devora.
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A seguir, um díptico documental, mostrando universos distintos em Brasis muito distantes: o curitibano Seremos Ouvidas, dirigido por Larissa Nepomuceno, e o baiano Dois Riachões: Cacau e Liberdade. Um é urbano, o outro rural; um mostra um problema (a impossibilidade das mulheres surdas de denunciar e obter respaldo aos casos de violência doméstica), outro, uma solução (o trabalho comunitário num assentamento em antigos latifúndios de cacau, ocupado por descendentes de trabalhadores rurais dos mesmos campos).
Sem buscar mais profunda experimentação de linguagem (ressaltando-se aqui o uso respeitoso e expressivo da Libras pelas personagens no primeiro filme), os curtas mostram realidades distantes, porém análogas: são, afinal, grupos que, mesmo num país tão marcado por dinâmicas de retrocesso, buscam seu lugar, sua fala, sua expressão; a invisibilidade social é o antagonista, combatido em ambos os filmes por personagens que lutam contra imposições físicas e sociais.
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O segundo curta gaúcho da noite, Eu não sou um Robô, dirigido por Gabriela Lamas, já veio como uma grata surpresa no último Festival de Gramado; a realizadora de Sesmaria, um denso e áspero drama rural, muda radicalmente sua linguagem: traz um filme urbano, claustrofóbico, de humor ácido e forte referência de Cronenberg e Roy Andersson. A cumplicidade e – veja bem – o flerte entre a protagonista (a própria Gabriela, ótima no papel) e um homem-mosca são entabulados em diálogos que vão do banal ao non-sense, acentuando o tom absurdo da comédia proposta. Por trás do humor, há uma sutil abordagem da desumanização inerente ao indivíduo em uma sociedade individualista – ecoando, num registro muito distinto, os temas de Desencanto.
Na conclusão, mais uma comédia: O Amor é um Cão do Inferno, dirigido por Sacha Bali e adaptado de um conto de Bukowski. Fortemente referenciado no cinema da pornochanchada, também dá-se num huis clos, restrito ao convívio de um casal; uma discussão cotidiana torna-se o estopim para uma sanguinolência brutal. O filme percorre uma tênue linha entre satirizar e endossar o machismo do protagonista; a degradação, porém, é universal, num universo onde o amor se materializa só pela catarse.
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