Os brasileiros, ao lerem um de seus maiores poetas, o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968), podem se transportar para uma terra distante e mítica, lugar de sonho em que tudo seria possível. “Vou-me embora pra Pasárgada”, anunciam. “Lá sou amigo do rei”, afirmam. E para quem ainda duvide de quanto aquele ambiente é especial, acrescentam: “Em Pasárgada tem tudo / É outra civilização”, repetindo os versos de Bandeira, publicados há exatos 90 anos, em 1930.
Pois qual não deve ser a surpresa dos mais desavisados quando souberem que Pasárgada, essa terra dos sonhos, fica no… Irã. O mesmo Irã que, na atualidade (mais uma vez), vive às turras com o não menos turrão Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. Como em outras circunstâncias ao longo das últimas décadas, o Irã, a par de suas belezas e de sua vasta cultura milenar, põe por terra os devaneios e as aspirações de paz de espírito dos pobres leitores de Bandeira.
A partir do momento em que os Estados Unidos mataram o general iraniano Qassem Soleimani, no dia 2 de janeiro, ao bombardearem Bagdá, no Iraque, onde ele se encontrava, mais uma vez o mundo se vê diante de um conflito armado entre nação do Ocidente e esse país do Oriente. E, para a maioria dos brasileiros menos familiarizados com o cotidiano dos iranianos, uma vez mais a mídia se encarrega de disseminar conteúdos nem sempre condizentes com a verdade. Pois é claro, também, que o Irã do mundo real passa longe de ser um país em conflito constante ou total.
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Em efeito, o Irã talvez diga mais ao coração dos brasileiros do que se possa imaginar à primeira vista. Trata-se, antes de mais nada, da formação contemporânea de um dos maiores impérios alguma vez surgidos, o Império Persa, que se estendeu de cerca de 550 a.C. aos tempos modernos. O termo Pérsia seguiu sendo usado até muito recentemente para identificar esse território, junto ao Golfo Pérsico, entre o Iraque, pelo lado ocidental, e o Turcomenistão, o Afeganistão e o Paquistão, pelo lado oriental.
É, vale referir, terra riquíssima, que tem a base da economia nas reservas de petróleo, e essa palavrinha mágica talvez explique toda e qualquer rusga que hoje possa ter com outros pretendentes a tais reservas. O petróleo tudo explica. E, pelo visto, tudo justifica.
O Irã, assim como ocorria com a Pérsia, como era oficialmente denominado até 1935, está presente em várias circunstâncias em nossas vidas. Quando saboreamos uma lima (da Pérsia), por exemplo. Ou quando degustamos um vinho Shiraz, cuja casta é originária da região circunvizinha a essa igualmente mítica cidade. E quando nos dedicamos às leituras de alguns dos mais universais expoentes das letras, a exemplo de Omar Khayyam (não por acaso traduzido ao português por… Manuel Bandeira).
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O Irã tem muito a mostrar. E muito a ensinar. E se no final da década de 1970 viveu mais uma forte revolução, que encerrou a dinastia dos xás (Mohhamed Reza Pahlevi foi o último) e promoveu a emergência dos aiatolás (Khomeini logo impôs seu nome), na atualidade só se tem a lamentar que cada novo confronto ameace colocar por terra patrimônios da humanidade. Da capital Teerã à segunda mais importante cidade do islamismo, Mashhad, próximo à divisa com o Turcomenistão e o Afeganistão; de Shiraz a Isfahan; e do litoral no Mar Cáspio ao Estreito de Ormuz, no Golfo de Omã, o Irã é deslumbrante.
Pasárgada talvez hoje já não inspire tudo aquilo que Manuel Bandeira nela vislumbrava, mas uma série de expedientes, na literatura e no cinema, permite conhecer mais e melhor aquela terra. Assim, evita-se ficar apenas com o senso comum que cerca a ameaça de mais um conflito formado nessa região. O Magazine indica livros e sugere um mergulho no cinema iraniano para entender essa cultura. Bons programas!
10 livros para entender melhor Irã
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Um haicai de Abbas Kiarostami
Aos olhos dos pássaros
o ocidente
é onde o sol se põe
e o oriente
onde o sol nasce,
apenas isso.
Arte que rompe fronteiras e censores
Por: Pedro Garcia
[email protected]
À primeira impressão, parece pouco provável que de um país periférico e com severa dificuldade em estabelecer uma democracia possa sair uma produção audiovisual digna de nota. Mas, apesar de permanecer praticamente à margem do circuito comercial ocidental, a cinematografia iraniana, além de profícua, goza de tradição e prestígio em todo o mundo.
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Uma geração recente de realizadores no Irã é responsável por parte do que de mais interessante se produziu em cinema nos últimos anos – vale lembrar que, somente na última década, o país abocanhou dois Oscar de filme internacional (com A separação em 2012 e O apartamento em 2017, ambos de Asghar Farhadi). Mais do que isso, filmes tornaram-se uma das principais expressões das angústias de uma nação cheia de contradições.
Desde o final da década de 1960, quando começou a se aproximar das vanguardas europeias, a produção cinematográfica do Irã chama a atenção do planeta. A censura, porém, que sempre rondou os realizadores mas se intensificou após a revolução de 1979, submeteu a indústria local a altos e baixos. Até hoje, os roteiros precisam ser previamente aprovados à luz de preceitos islâmicos e o financiamento e a distribuição são controlados. Isso sem falar na perseguição sofrida por cineastas como Jafar Panahi, que, após apoiar o candidato de oposição na eleição presidencial de 2010, foi condenado e vive em prisão domiciliar e sob proibição de filmar – embora isso não o tenha silenciado: já lançou quatro obras na clandestinidade e recebeu o Urso de Ouro em Berlim.
É impressionante que, mesmo nesse contexto repressivo, o cinema iraniano tenha alcançado, sobretudo a partir dos anos 1990, reconhecimento mundial, a ponto de figurar continuamente em festivais internacionais, e gestado figuras como Abbas Kiarostami, hoje um nome fundamental da sétima arte, admirado, dentre outros, por Jean-Luc Godard, Akira Kurosawa e Martin Scorsese. Seu clássico Close-up (1990), aliás, é precursor do que se tornaria uma espécie de assinatura da produção iraniana contemporânea, um gênero próprio criado naquele país: filmes que intencionalmente misturam realidade e ficção, em oposição à tradição hollywoodiana. Essa linha seria seguida por Panahi e outros, como Mohsen Makhmalbaf e Samira Makhmalbaf.
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Além do aspecto estético, o cinema iraniano também impressiona em termos quantitativos: são lançados anualmente cerca de cem longas de ficção e mais de mil curtas, o que coloca o país entre os dez maiores produtores mundiais. Nesse universo, destacam-se os filmes de cunho político, que expõem as complexidades da sociedade iraniana, como a opressão à mulher. Como diria o cineasta Bahman Ghobadi, “a câmera é uma arma com forte poder de influência”.
10 filmes essenciais
A vaca (1969), de Dariush Mehrjui
Close-up (1990), de Abbas Kiarostami
O jarro (1992), de Ebrahim Foruzesh
O balão branco (1995), de Jafar Panahi
Um instante de inocência (1996), de Mohsen Makhmalbaf
Gosto de cereja (1997), de Abbas Kiarostami
Filhos do paraíso (1998), de Majid Majidi
A maçã (1999), de Samira Makhmalbaf
20 fingers (2004), de Mania Akbari
A separação (2011), de Asghar Farhadi