Aconteceu faz poucos dias. Eu me deslocava pelo Centro, absorto em preocupações do cotidiano, quando algo subitamente me parou. Era um som muito familiar. Uma sequência de dois assobios muito breves, um levemente mais agudo do que o outro. De maneira instintiva, olhei ao redor, procurando a origem daquele barulhinho, tão presente no meu repertório particular de referências.
Era, afinal, o assobio do meu pai. Uma espécie de código intrafamiliar, que ele utilizava para que não nos perdêssemos uns dos outros quando estávamos em locais muito movimentados ou abertos. Ao invés de gritar, soltava o duplo assobio, que durava menos de um segundo e era potente, mas discreto. E jamais falhava. Por um instante, até pensei que meu pai pudesse estar passando por ali e tivesse se valido de sua assinatura sonora para chamar minha atenção. Mas era outra coisa, que não pude identificar.
De volta à minha marcha, pensei no quanto um simples ruído é capaz de evocar toda uma carga de lembranças e afetos. O assobio me transportou para muitos lugares em que estivemos em família – passeios de fins de semana, viagens de férias, etc. Nossas memórias são compostas de imagens, mas também de cheiros, sabores e, sim, sons. Sempre que penso no meu avô materno, por exemplo, lembro de imediato de um som. E não um que saía de sua boca, mas de sua bengala. Nos últimos anos de vida dele, quando íamos visitá-lo em Porto Alegre, chegávamos e sentávamos na sala, esperando que aparecesse. Depois de alguns minutos, começávamos a notar um ruído baixinho, uma espécie de rangido sutil produzido pela pressão da bengala sobre o carpete do corredor. Era o que indicava que, no seu passinho amansado pela idade e saúde, ele estava chegando.
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Segundo a retrospectiva do Spotify, que saiu essa semana, ao longo do ano eu ouvi uma mesma música 50 vezes – o ótimo samba Água de Chuva no Mar, na versão de Beth Carvalho com Hamilton de Holanda. Não é pouco, mas certas canções – que, afinal, nada mais são do que combinações de sons – podem gerar um êxtase que tenho até dificuldade em explicar. É como se entrássemos no fenômeno físico que envolve os sons e viajássemos pelo ar junto com aquela frequência. Talvez por isso que eu tenha dedicado 14.747 minutos a ouvir música em 2021. É como se eu tivesse passado dez dias inteiros, e um pouco mais, “viajando” com meus sons favoritos.
De certa forma, os sons também contam as nossas trajetórias, das primeiras palavras que balbuciamos aos shows das nossas vidas. E, por sorte, há muitas coisas boas para ouvir neste mundo. Boas anedotas, risadas gostosas, notas afinadas, palavras gentis, relatos inspiradores, sabedorias acumuladas. Às vésperas de um novo ano, ouvir mais me parece uma baita resolução.
Por outro lado, de tempos para cá, parece que um alarido desagradável nos persegue, como o zumbido insistente e agoniante de um inseto que pousa em nossas orelhas. São grosserias baratas, pensamentos obscurantistas, desinformações intencionadas, ignorâncias desavergonhadas, simplificações maldosas, preconceitos, insensibilidades. Há sons que chocam, que revoltam, que não queremos crer que são reais, mas são – ou será que estou ouvindo coisas? Pensando bem, talvez a melhor resolução seja encontrar uma forma de ajudar, por meio de atos e decisões, a termos um mundo mais melodioso e menos histérico.
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