Na rotina de uma comunidade, há conquistas que configuram divisor de águas. Na história de Santa Cruz do Sul, um desses momentos pode ser claramente identificado: quando chegou o trem.
A Estação Férrea, com a ligação de cerca de 31 quilômetros até Ramiz Galvão, foi inaugurada no dia 15 de novembro de 1905. Em pleno Dia da Proclamação da República, ocorrida 16 anos antes, e com a presença do presidente do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, naquela mesma data Santa Cruz era elevada de Vila a Cidade, para deixar bem claro o quanto aquela melhoria na infraestrutura e na mobilidade representava em termos de pretensões de progresso.
O trem deixou de circular em 1965. Mas o que ele trouxe nunca deixou de estar bem visível na paisagem. O mesmo vale para a estação, que segue aí, como guardiã da memória.
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Em um tempo muito anterior à abertura de estradas interligando as diferentes localidades do Rio Grande do Sul, e mais ainda da pavimentação delas com asfalto, a chegada do trem era o símbolo máximo do progresso. Para Santa Cruz, essa hora chegou no início do século 20, e pouco mais de cinco décadas desde a vinda dos primeiros imigrantes alemães à colônia, criada no interior do município de Rio Pardo. O desenvolvimento local fora vertiginoso, a ponto de a emancipação ter sido alcançada em 1877, apenas 37 anos depois da fundação. Mas as dificuldades de ligação com outras regiões ainda eram um empecilho. Por isso, a ferrovia passaria a constituir aspiração constante.
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Curiosamente, os caminhos de ferro se materializaram no Estado na mesma época em que Santa Cruz obtinha sua autonomia. A primeira ferrovia, entre Porto Alegre e São Leopoldo (a colônia alemã pioneira), foi inaugurada em 1874. Três anos depois começava a obra que faria a ligação com a área central do Estado, e também com a fronteira, até Uruguaiana. Assim, em 1883 foi inaugurado o trecho entre General Câmara e Cachoeira do Sul, e no ano seguinte até Santa Maria. Ou seja, a região estava conectada.
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Mas Santa Cruz, claro, a Oeste do vale, próximo à Serra Geral, continuava isolada. Haja enfrentar estrada a cavalo, em carroça ou charrete, até Rio Pardo. E isso que a produção agrícola, de tabaco, grãos e hortigranjeiros em geral, bem como de animais e de banha, seguia a pleno, precisando ser escoada para os centros maiores. Diante disso, o empenho de energia foi enorme das lideranças e entidades em cobranças para que a cidade fosse contemplada com uma linha.
Que começou a tomar forma somente no século 20, quando várias outras melhorias surgiram em paralelo, no abastecimento e na infraestrutura em geral. Na verdade, ainda que a inauguração tenha ocorrido em 15 de novembro de 1905, atraindo uma multidão sem precedentes, o trem já circulava desde o ano anterior. E, de pronto, a comunidade descobriu rápido o quanto essa facilitação do acesso mudava a rotina. Se antes algum viajante se sentia desencorajado a fazer o percurso, agora seguidamente alguém que se encontrava em Rio Pardo aproveitava e fazia o passeio até Santa Cruz, até pela curiosidade de ver de perto como andava aquela colônia ocupada com alemães.
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Foi o que aconteceu ainda em 1904 com o viajante italiano Vittorio Buccelli, que percorria o Estado e incluiu Santa Cruz em seu roteiro, descrevendo o que viu em seu livro Uma viagem ao Rio Grande do Sul.
Para frustração da população, o trem deixou de circular entre Ramiz Galvão e Santa Cruz ao final de abril de 1963. Logo na sequência, políticos e empresários se mobilizaram de forma a tentar reverter a decisão, o que efetivamente conseguiram, com o trem voltando a operar em 5 de agosto. Mas não por muito tempo. Em setembro de 1965, parava em definitivo.
Hoje, a Estação Férrea segue na paisagem, junto à Rua Ernesto Alves, e de frente para a Rua Ramiro Barcelos, como um símbolo da memória. Ocorre que o prédio transformou-se no Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz, em homenagem ao fundador da Gazeta do Sul, e um dos defensores da manutenção da ligação férrea com Rio Pardo. O mesmo endereço pelo qual Santa Cruz se conectou com o mundo ao longo de seis décadas hoje conecta o passado, o presente e, sem dúvida alguma, o futuro.
O cachoeirense Rubens Silveira, de 83 anos, tinha 12 quando se mudou com a mãe, viúva, para Santa Cruz. Foram residir na Rua Senador Pinheiro Machado, 1.171, praticamente na esquina com a Assis Brasil, onde esta, na extensão rumo ao sul, passa a ser a Paul Harris. Exatamente do lado do trilho do trem, e ainda nas imediações da Estação Férrea. Resultado: ver e ouvir o trem passar tornou-se elemento inseparável de cada dia.
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Na verdade, poucos saberiam de quem se trata apenas pelo nome ou pelo sobrenome. Quando chegou à cidade, os novos amigos que fez lhe perguntaram: de onde era? “De Três Vendas”, respondeu, nome da localidade de onde provinha, do interior de Cachoeira. “Vendas? Então é Bodega”, concluíram. E Bodega ficou, seu apelido para sempre.
Em Santa Cruz, sua mãe, dona Anaides Flores da Silveira, iniciou novo relacionamento com Naudelino da Rosa, o popular seu Nau. Que era, veja só, o guarda-chaves, ou ainda lanterna, responsável por avisar a chegada do trem e cuidar dos procedimentos diversos do ingresso dele na estação. Assim, desde 1953, quando veio à cidade, e até 1965, quando a ferrovia foi desativada, poucos vivenciaram a rotina ferroviária como ele.
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Ocorre que a moradia da mãe se situava a cerca de quatro metros de onde passavam os trilhos. De dentro de casa, pela janela, podia ver a Maria-Fumaça, com os inúmeros vagões, ou o carro-motor (espécie de ônibus sobre trilhos), tanto na saída quanto na chegada. E, claro, ajudava seu Nau nas tarefas. Conhecido que era de todos na estação, de tempos em tempos ia junto na viagem até Ramiz Galvão.
Há 50 anos é casado com Maria de Lourdes, e com ela tem o casal de filhos Marcelo e Rosicléia. No terreno onde residia a mãe, construiu casa própria: exatamente onde passavam os trilhos. Os prédios até precisaram ser erguidos mais enviesados, e não retos, em virtude do antigo trajeto que o trem fazia naquela quadra.
Bodega tem na ponta da língua, até hoje, os horários em que passavam os trens ao lado da casa onde residia. O carro-motor (“ônibus sobre trilhos”, para mais de 40 lugares) saía da estação às 4 da madrugada, seguia para Ramiz Galvão e depois direto a Porto Alegre. Voltava ao final do dia, chegando em Santa Cruz às 20h30.
Era comum que Bodega estivesse pela estação, para vender revistas ou carregar alguma mala, em geral até o Hotel Santa Cruz. Ou apenas para espiar o movimento. Afinal, a área em que residiam era reduto quase que exclusivo dos ferroviários. “Aqui no entorno todos viviam em função do trem”, afirma.
Se o carro-motor saía cedo, a Maria-Fumaça, que pernoitava no pátio da estação, saía às 9h30 rumo a Ramiz Galvão. Cinco minutos antes, um apito; na hora da partida, mais um alarme, e todos sabiam que a locomotiva cruzaria em instantes. Levava 1h15 até Rio Pardo. Por vezes recolhia tabaco na indústria Tatsch, próximo, ou ainda na Souza Cruz: trilhos específicos levavam vagões até dentro da fábrica. A volta da Maria-Fumaça a Santa Cruz era às 16h30.
Como o frigorífico Excelsior tinha unidade na Rua Júlio de Castilhos, muitas vezes vinham vagões com bovinos ou suínos. Eventualmente, um porco se soltava e era uma confusão na redondeza. Até gado bravo escapava e apavorava a população.
Acontecimento especial era a vinda do circo. Numa ocasião, Bodega fora incumbido de ir com bandeja até o açougue do seu Joãozinho, que ficava próximo (era o costume da época para buscar carne). Na volta, deu-se conta de que o trem chegara; nele, atrações circenses. Fascinado, passava ao lado do vagão, com a carne sobre a bandeja, sustentada com a mão. De repente, sentiu um movimento e viu que a carne fora surrupiada. Por um macaquinho, que não hesitou diante daquele naco suculento.
Foram muitos causos, reflete Bodega, uns pitorescos, outros trágicos, envolvendo trens e trilhos. À noite, a locomotiva era levada até o girador, onde era girada para, de manhã, seguir no sentido de Rio Pardo. “Ali, naquele girador, uma vez um menino se descuidou e caiu dentro”, recorda, com pesar. São histórias de um trem que, se passou e não mais voltou, continua ressoando na memória de tanta gente.
As viagens de trem entre Ramiz Galvão e Santa Cruz, ou desta para o mundo, permaneceram vivas no imaginário de quem fez o percurso. Entre os viajantes esteve o escritor Aldyr Garcia Schlee, que nasceu em Jaguarão em 22 de novembro de 1934 e faleceu em Pelotas em (veja só) 15 de novembro de 2018, aos 83 anos. Por coincidência, ele morreu na mesma data em que, em 1905, a ligação Santa Cruz-Ramiz Galvão fora inaugurada.
Em conto de seu livro Memórias de o que já não será, de 2014, “Os Alemão”, descreve passeio nesse trecho. E que fora verídico. Diz: “Na véspera do Natal de 1943, voltei a Santa Cruz do Sul numa viagem inesquecível: primeiro, de avião até Porto Alegre; depois, de trem até Ramiz Galvão – e, por fim, num carro-de-linha Ford Modelo T que varou a escuridão e o silêncio da noite sobre trilhos iluminados de vertiginosa magia, como para me deixar gloriosamente diante da árvore em torno da qual se cantava o Tannenbaum.”
Em entrevista à Gazeta, em 2011, Schlee detalhara: “Santa Cruz fez-se, desde meus 9, 10 anos, parte importante, ao mesmo tempo inesquecível e mágica, de minha memória e de minha imaginação. Eu vinha passar as férias escolares aqui, a cada fim de ano, com meus pais – que moravam inicialmente na Avenida Independência, praticamente dentro de uma fábrica de balas! Depois, moramos na Júlio de Castilhos, próximo à Estação Ferroviária… Era puro encantamento”.
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