Ao anunciar, em março, a intenção de desestatizar a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), o governador Eduardo Leite (PSDB) suscitou um debate já travado em diversos municípios nos últimos anos e que equilibra fatores técnicos e ideológicos: afinal, quais as vantagens e riscos de permitir a participação do setor privado na gestão dos serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto?
A privatização da Corsan ainda é um projeto. Um passo importante, porém, já foi dado, com o recente aval da Assembleia Legislativa à retirada da Constituição Estadual do dispositivo que exigia a realização de plebiscito para venda de empresas estatais.
Se o plano se concretizar, o que dependerá de outra votação, o Estado, que hoje detém 99,9% do capital da empresa, deve manter em torno de 30% dos ativos. Segundo dados da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), até dezembro 291 municípios brasileiros tinham companhias particulares atuando no saneamento, por meio de concessões ou PPPs.
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Esse número, porém, tende a aumentar com a entrada em vigor do novo Marco Legal do Saneamento, que abre caminho para uma ampliação da presença privada no setor. Prevista na nova legislação, a meta de alcançar água potável a 99% da população e esgoto tratado a 90% até 2033 é o que levou o governo a decidir transferir o controle acionário da Corsan.
A alegação é de que a empresa hoje não tem capacidade para garantir a universalização nesse prazo, o que deve exigir R$ 10 bilhões em investimentos. A Corsan atende 317 dos 497 municípios gaúchos, mas somente 32,3% do esgoto gerado é tratado, percentual inferior à média nacional (54,1%), além de um dos maiores índices de perda de água do País (43%).
A saída privatista, por outro lado, é alvo de críticas e inspira receios em gestores municipais e da sociedade. Um dos temores é de que, sem o controle estatal, princípios como o da modicidade tarifária sucumbam diante da priorização do lucro. Outro é que municípios pequenos, onde a operação só se viabiliza por meio do chamado subsídio cruzado (em que cidades superavitárias financiam cidades deficitárias), acabem desassistidos por não serem atrativos ao mercado privado.
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Prefeitos ainda alegam dúvidas
A Corsan atende atualmente 15 municípios do Vale do Rio Pardo. Entre os gestores, ainda há inseguranças em relação à possível desestatização da companhia. Uma delas é quanto ao cumprimento das metas e prazos estabelecidos nos contratos que estão em vigor.
“Temos grandes obras previstas no Plano Municipal de Saneamento Básico que não sabemos se vão ocorrer ou não. Então, é uma grande dúvida”, disse o prefeito de Rio Pardo, Edivilson Brum (MDB). À frente de Venâncio Aires, Jarbas da Rosa (PDT) também teme pela continuidade de projetos pactuados com a Corsan que estão em andamento no município.
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Para ele, o ideal seria uma abertura de capital, mas sem perda de controle acionário pelo Estado. “Além de ter um superavit orçamentário, hoje a água é uma questão de soberania de Estado e sua privatização é temerária”, criticou. Mandatária de Santa Cruz, Helena Hermany (PP) cobra uma maior discussão com os municípios. O contrato com a Prefeitura foi assinado em 2014 e tem duração de 40 anos.
“Não vejo conveniência em fazer isso agora”
Para o ex-presidente da Corsan Flávio Ferreira Presser, a desestatização está sendo conduzida de forma “precipitada” pelo governo, o que pode tornar a operação pouco vantajosa para o Estado. “Uma possível venda tem que ser no sentido de maximizar os seus ativos. Então, primeiro é preciso saber como o mercado vai se estruturar, senão há o risco de vender as ações a um preço de banana por conta de pressa.
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A companhia é pública. Se a alternativa é a venda, que pelo menos seja uma boa venda”, alerta. Na visão de Presser, além de uma discussão maior com as prefeituras, é preciso aguardar que a capacidade econômico-financeira das companhias seja comprovada, conforme prevê o Marco Legal. Sem isso, entende ele, não há segurança para um processo de privatização.
“Não vejo conveniência alguma em fazer isso agora.” O executivo também pondera que, como os contratos são de longo prazo, um passo mal calculado pode gerar prejuízos por muito tempo. “E se não der certo? É algo que não se pode errar, pois se erra traz problemas maiores. Foi o que aconteceu, por exemplo, no México”, observa.
Presser alega ainda que existem várias outras formas de ampliar a participação do setor privado sem a perda do controle acionário, como por meio de PPPs ou abertura de capital. É o que aconteceu com a Sabesp, companhia de saneamento do Estado de São Paulo.
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Embora alegue que o fato de o setor ser regulado reduz as chances de aumento tarifário após uma privatização, Presser concorda que há risco de “ações oportunistas”, sobretudo se não houver uma regulação independente. Outro risco, conforme ele, envolve os municípios menores. “Se a venda for motivada para fazer caixa, o prefeito pode pensar: então vou fazer caixa também. Isso pode acontecer. E as empresas privadas vão estar olhando para os grandes municípios. Por isso que não pode reunir três ou quatro secretários e decidir isso, precisa de uma grande negociação”, ressalta.
O ex-presidente ainda acredita que é possível combater, por meio de políticas instituídas por lei, as intromissões políticas na gestão de empresas estatais que comprometem a profissionalização, e defende que a Corsan pode ter condições de cumprir as metas do Marco Legal, apesar das amarras do setor público. “Nós tínhamos um planejamento que não previa venda de ações. E hoje existe a Lei das Estatais, que prevê uma série de exigências para melhoria da gestão das empresas, inclusive melhorando as formas de aquisição, que já estão bem melhores.”
“Objetivo é levar o serviço para quem não tem”
Segundo o diretor executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), o gaúcho Percy Soares Neto, o setor privado pode contribuir para o processo de universalização do saneamento devido à capacidade de investimento superior às empresas públicas e à agilidade gerencial.
“O privado tem condições de aportar recursos e melhorar a capacidade de gestão e governança. Quando tu abres o capital no mercado privado, o mercado te exige acreditar no papel que tu vais vender, o que leva a modelos de transparência e compliance mais rígidos”, observa.
De acordo com o executivo, a venda do controle acionário da Corsan não afasta o poder público da condução do setor de saneamento, na medida em que são as prefeituras que detêm os contratos. Estes, por sua vez, continuarão regulados e poderão ser rompidos caso as obrigações não sejam cumpridas.
“A água é pública e será sempre pública. Eu simplesmente mantenho o controle estatal por meio da regulação e busco parceiros que possam contribuir. E é muito mais fácil tirar uma empresa privada se não estiver se saindo bem do que uma empresa pública.”
Para ele, o único objetivo da participação privada é “levar o serviço para quem não tem”. “Se a companhia não tem recursos ou não consegue gerar recursos para fazer a universalização até 2033 e existem no mercado operadores dispostos a fazer isso, não tem por que não buscá-los.”
Em razão da regulação, Soares Neto garante que não há risco de a água encarecer, uma vez que a tarifa não pode ser alterada sem anuência das agências. Por outro lado, ele alerta que a tarifa cobrada precisa suportar os investimentos realizados. “Uma coisa é cobrar para fazer lucro, outra coisa é cobrar para fazer um investimento”, acrescenta. O dirigente também garante que há experiências bem-sucedidas de localidades com empresas privadas à frente dos serviços de saneamento – como o município paulista de Limeira, onde o acesso a água potável e esgoto tratado já foi universalizado.
Ainda segundo Soares Neto, apenas 17% dos municípios atendidos hoje por companhias privadas têm mais de 200 mil habitantes, enquanto 60% têm menos de 50 mil. Isso, na sua visão, prova que há sim interesse por pequenas localidades, que hoje são deficitárias. “Esses municípios são inviáveis hoje, mas a custo de financiamento estatal. Isso significa servidores cheios de garantias, contratações com as amarras do Estado, tudo isso é custo.”
ENTREVISTA
Édison Carlos
Presidente executivo do Instituto Trata Brasil
Por que o Brasil tem tanta dificuldade em avançar em infraestrutura de saneamento?
Temos um histórico de baixos investimentos na maior parte do Brasil, com uma situação um pouco melhor em São Paulo, no Paraná e em Minas Gerais. Essa situação de dificuldades, com ainda 35 milhões de brasileiros sem acesso a água potável e 100 milhões sem coleta e tratamento de esgoto, é fruto de um descaso histórico de prefeitos, governadores e até do governo federal. As cidades foram crescendo, e as companhias de água e esgoto não conseguiram dar vazão a essas necessidades.
Qual a nossa principal carência atualmente?
Quase 84% da população tem água potável. Ainda faltam 35 milhões, o que parece pouco, mas equivale à população do Canadá inteiro. Temos ainda muita gente que não tem água principalmente nas periferias, nas favelas, nas áreas rurais, no semiárido, na Amazônia, essas áreas mais esquecidas do Brasil. Mas a parte de esgoto é a que mais ficou para trás. A maior carência é na coleta e principalmente no tratamento. O Brasil não trata nem metade do esgoto gerado. E não podemos esquecer dos indicadores ruins de perda de água potável. O País perde quase 40% da água antes de chegar nas casas.
A meta de universalização da água potável e esgoto tratado até 2033 é factível?
Na nossa visão, não é factível. O Brasil é muito diverso e há dificuldades muito grandes em algumas regiões. Há pessoas que moram em lugares muito difíceis até do ponto de vista geográfico. Mas a própria lei também traz a data de 2040 para situações extraordinárias, onde comprovadamente a empresa não conseguir levar os serviços até Então, 2040 é mais factível, pela complexidade do Brasil em termos de território, distribuição da população e da maior ou menor capacidade financeira dos estados e municípios.
Com o novo Marco Legal, haverá uma ampliação da participação de empresas privadas no setor?
O setor privado tende, sim, a aumentar sua participação porque todas as companhias de água e esgoto, públicas ou privadas, precisarão comprovar que terão recursos e saúde financeira para levar os municípios até as metas. Muitas não conseguirão comprovar essa capacidade, e os municípios terão que abrir licitações para que outra companhia entre. As empresas privadas passarão a ter um mercado bem maior para atuar. O setor hoje é majoritariamente dominado por empresas públicas. E muitas delas são boas, operam em cidades com padrões de saneamento muito bons.
Qual a importância da universalização no setor de saneamento?
O saneamento é a estrutura mais transversal que existe. Quando uma cidade passa a ter saneamento básico, a primeira mudança positiva é na saúde. As pessoas ficam menos doentes, usam menos os serviços de saúde, gastam menos com remédios. Temos um quadro grande de doenças que vêm da água poluída e afetam mais áreas sem saneamento. E isso tem um efeito sobre a educação, a renda, a valorização imobiliária e até sobre o turismo. Em todos os estudos que o Trata Brasil faz, a soma dos ganhos econômicos que se tem ao universalizar o saneamento básico supera em muito o custo necessário para resolver o problema. É o maior investimento que uma cidade, estado ou país pode fazer.
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