Em um destes dias de confinamento nossa caçula, Ágatha, convidou-me para algumas partidas do jogo da forca. Minha esposa, Patrícia, argumentou que era uma boa ideia, que o jogo é bastante instrutivo e que, neste período longe da escola, ajudaria a pequena a estudar as palavras. Contudo, conforme acabei descobrindo, o jogo também estimula a malandragem dos participantes.
A começar pela montagem do Judas enforcado, que não acaba nunca quando Ágatha tem dificuldades para formar a palavra. Já na primeira rodada, quando coloquei a última perninha no boneco, a sapeca alegou que a partida não acabara, pois ainda faltava muito para ele estar completo.
– Ele não tem rosto. Pelo visto, tu nunca jogou. Onde já se viu? Acabar a partida antes de colocar o rosto no boneco…
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Só nesse estratagema a traquinas já angariou mais quatro tentativas, pois, conforme alegou, cada parte do rosto – a boca, o nariz e os dois olhos – equivaleria, individualmente, a uma letra errada.
Mas, quando faltava uma última letra para formar a palavra – estando o Judas com rosto formado –, avisou-me de mais uma regra.
– Pai… tu sabe que o boneco não é careca, né? Ainda falta o cabelo.
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E, por fim, deu-se conta da palavra antes que tivesse de apelar para os dedos das mãos e pés do boneco, o que lhe garantiria mais 20 tentativas – isso, se não contasse as unhas.
Minha palavra secreta, enfim, era elefante, o que gerou críticas da caçula. Eu achei que seria uma palavra fácil, pela repetição do “e”, mas ela argumentou que era uma palavra muito longa, dado ter mais de quatro letras.
– Além disso, é um animal muito fora da nossa realidade… não se veem elefantes andando por aí…
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Nisso, captei – pois também não sou tão bobo assim – a forma como a caçula elabora as suas palavras secretas: observando os objetos ao redor. E então foi a vez dela me impor um desafio – uma palavra com cinco letras.
Conservador no jogo, apelei a um estratagema fundante no desafio da forca – começar pela vogais. E deu certo, pois emplaquei três letras de cara:
A _ O _ E
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Otimista, tasquei um “erre”, pelo simples fato de ser a inicial do meu nome. E acertei novamente:
A _ ORE
Mas então teve início a minha angústia. Que palavra seria aquela? Não me vinha nenhuma opção aceita pela gramática portuguesa e apelei para a estratégia da eliminação. Fui citando letras em ordem alfabética e, a cada tentativa, o bonequinho ganhava corpo na forca. Que sofrimento!
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A incapacidade de descobrir a palavra foi-me então corroendo por dentro, alimentando agonias e inquietações, fazendo-me sentir um tolo.
Então, lembrei-me de como a caçula formulava suas palavras secretas, a partir das coisas ao seu redor. E, já fora de mim, assaltado por incontrolável ansiedade, decidi apelar à trapaça.
– Ágatha, me dê uma pista. Esta palavra… é algo que está ao nosso redor? – e encarei-a nos olhos.
Conforme eu (já transmudado de pai decoroso para um ser biltre, patife e calhorda) previra, a caçula olhou na direção de algo – certamente, o objeto nomeado pela palavra secreta – e acompanhei-lhe o olhar. E dei com a janela, aberta para o quintal.
A angústia só se fez crescer. O que haveria no quintal, que se encaixava com aquela maldita palavra. Da janela só viam-se… árvores. E, enfim, joguei a toalha.
– Desisto!
A notícia da desistência foi recebida com êxtase pela caçula, que ainda prolongou o mistério por mais alguns segundos antes de revelar a letra que faltava: o “vê”, pobre e esquecido habitante lá do final do alfabeto. A palavra, então, era…
ÁVORE
– Ávore? – intriguei-me. – Mas que palavra é essa?
Ué? – retrucou a caçula. – Nunca viu uma ávore? São aquelas plantas grandes e verdes, que temos no quintal…
– Mas estas são ÁRVORES!
– Ahhh… verdade. Esqueci o “erre” depois do “A”… Paciência, tu perdeu mesmo assim.
– Mas eu teria ganho, pois logo falei “erre”, tu até marcaste o segundo “erre”…
– É… mas depois, desistiu. Logo tu, que fala em nunca desistir. Perdeu! – E, dando o jogo por encerrado, tratou de recolher o papel e saiu cantarolando:
– O pai perdee-eu, o pai perdee-eu…
Mas a traquinas que aguarde. Vai ter revanche.
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