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ECO-92

Os 30 anos da conferência que mudou o mundo

Sob a liderança de Collor, mais de 100 chefes de Estado passaram pelo Riocentro: encontro foi um marco no engajamento da sociedade com a pauta. | Banco de Imagens/GS

“Decidir o futuro da Terra”. Assim a manchete da Gazeta do Sul definia a meta do evento que se iniciava naquele 3 de junho de 1992 no Rio de Janeiro. A Eco-92, que voltou os olhos do planeta para o Brasil durante 10 dias, não cessou as investidas contra a preservação da natureza, mas entrou para a história ao inserir de forma definitiva a pauta ambiental no debate público mundial.

Realizada no Riocentro, na Barra da Tijuca, a conferência reuniu representantes de 178 países filiados à Organização das Nações Unidas (ONU). Não era o primeiro encontro mundial dedicado ao meio ambiente: exatas duas décadas antes, ocorrera a Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, na Suécia. À época, setores da comunidade científica já emitiam alertas sobre questões como poluição do ar e chuva ácida. Foi naquele momento, inclusive, que o conceito de sustentabilidade, hoje tão em voga, começou a ser elaborado.

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Embora tenha terminado sem acordos significativos, o evento pavimentou o caminho para uma série de movimentos importantes, como a criação da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1983, e a publicação, quatro anos depois, do histórico Nosso Futuro Comum. Foi este documento, por sinal, que, ao apontar a necessidade de uma agenda global de mudanças, sugeriu às Nações Unidas a convocação de uma nova conferência internacional, que abordasse temas como aquecimento global e desmatamento. Coube ao Brasil, país com a maior biodiversidade do mundo, sediar o encontro, do qual participaram mais de 100 chefes de Estado.

Conforme o biólogo Mairon Bastos Lima, pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo, um dos grandes méritos da Eco-92 foi envolver a sociedade no debate ambiental. “Foi um evento, de certo modo, à frente do seu tempo. Não foi cedo demais do ponto de vista da resolução dos problemas práticos, mas trouxe à pauta política internacional e ao discurso público temas que até então eram restritos à comunidade científica”, observa.

Em termos práticos, o principal resultado foi a criação das três grandes convenções-quadro, das quais a do clima é considerada, de longe, o maior legado da conferência. Foi a partir dela, por exemplo, que foram firmados o Protocolo de Quioto, em 1997, e o Acordo de Paris, em 2015, obrigando os países ricos a reduzirem as suas emissões de gases de efeito estufa. “Se nós temos desde os anos 90 estes encontros anuais das Conferências do Clima, devemos isso àqueles acordos firmados no Rio. Os frutos da Eco-92 seguem tendo desdobramentos positivos até hoje”, analisa Lima. As outras convenções foram voltadas à conservação da biodiversidade e ao combate à desertificação.

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Um legado de construção de consciência

Se hoje o desenvolvimento sustentável está no currículo das escolas e no radar de governos e empresas, em boa parte isso é consequência de um ambiente criado a partir da Eco-92. De acordo com o pesquisador Paulo Moutinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o evento abriu caminho para a incorporação da pauta ambiental às estruturas de governos locais, com uma explosão de secretarias de meio ambiente nos municípios e a criação de órgãos voltados à preservação da natureza. O mesmo se deu no terceiro setor, com a fundação de diversas ONGs ambientalistas e institutos de pesquisa independentes.

Na avaliação de Moutinho, isso representou para o Brasil um salto em termos de produção de informações e de monitoramento de questões relacionadas ao meio ambiente. “Hoje, temos uma sociedade capaz de exercer uma cidadania que é difícil ver em países em desenvolvimento”, analisou.
De acordo com o engenheiro agrônomo gaúcho Arno Kayser, especialista em ecologia humana, com a conferência do Rio, o cuidado com a natureza deixou de ser uma preocupação apenas dos ecologistas. “O assunto foi colocado com muita força na sociedade. O MST adotou essa pauta, os grupos ecumênicos também. Cada movimento passou a trabalhar isso dentro das suas pautas. E as empresas e os governos tiveram que ‘rebolar’ um pouco mais”, observou. Kayser recorda que políticas públicas de grande impacto também foram apresentadas na esteira do evento, como programas voltados à preservação de reservatórios hídricos relevantes – inclusive no Rio Grande do Sul, com o Pró-Guaíba.

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Além da ampliação da discussão sobre as mudanças climáticas, o legado da conferência inclui, por exemplo, a assinatura do Protocolo de Nagoya, em 2010, sobre partilha equitativa dos benefícios surgidos a partir da biodiversidade, e que mais de 100 países, incluindo o Brasil, já ratificaram. “É um acordo extremamente importante para nós, porque dá mais base legal internacional para o combate à biopirataria e para evitar que empresas estrangeiras se apropriem indevidamente de patentes sobre a biodiversidade brasileira”, explica Mairon Bastos Lima.

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Avanços tímidos

Apesar dos inegáveis avanços em termos de conscientização, especialistas também são unânimes em apontar os insucessos da luta ambiental pós-92. Um dos encaminhamentos da conferência foi a Declaração do Rio, com 27 princípios de desenvolvimento que deveriam nortear as ações públicas e privadas para a sustentabilidade, mas que acabou esquecida. “Muitos governos mal sabem que ela existe e que seus países a assinaram. É lamentável”, observa Mairon Bastos Lima.

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Outro fracasso, na visão de Lima, foi a falta de um acordo voltado ao combate ao desmatamento. Na ocasião, o próprio Brasil, entre outros países, foi contra a criação de uma convenção internacional sobre florestas, temendo a intromissão estrangeira. Isso, porém, colocou o país em uma posição de submissão a regras impostas por outras nações sobre os produtos importados do Brasil. “Hoje, o Brasil poderia ser uma potência na diplomacia internacional sobre florestas através dessa convenção. Criou-se, em vez disso, um mero fórum sobre florestas que é basicamente uma instituição vazia, que nada entregou nos últimos 30 anos. Tem-se então os países compradores de commodities brasileiras legislando unilateralmente sobre as florestas brasileiras”, colocou.

De acordo com o geólogo José Alberto Wenzel, os resultados da Eco-92 foram aquém do esperado por falta de engajamento de alguns dos países-chave, como Estados Unidos, maior emissor de gases poluentes do planeta. O então presidente norte-americano, George Bush, chegou ao Rio na reta final da conferência e se negou a assinar a convenção sobre a biodiversidade e a se comprometer com a destinação de recursos para projetos ambientais. “Isso provocou um enfraquecimento. Os mandatários maiores do mundo não deram o apoio esperado.”

De acordo com Lima, apesar do entendimento firmado na conferência de que caberia aos países ricos liderarem a transição para um novo sistema, menos nocivo à natureza, reduzindo as emissões e auxiliando os países em desenvolvimento com apoio financeiro e transferência de tecnologia, na prática isso não ocorreu na medida necessária. “Os países estão cada vez mais preocupados em salvaguardar os seus próprios interesses, o que é péssimo para questões globais de sustentabilidade, que requerem um concerto internacional entre as nações”, conclui.

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O protagonismo do Brasil

Bancada pelo então presidente Fernando Collor de Melo, a candidatura do Brasil para sediar a Eco-92 não foi por acaso. De acordo com José Alberto Wenzel, o país à época buscava se reposicionar em nível internacional. E a pauta ambiental, que ganhava cada vez mais atenção, tornou-se a oportunidade perfeita.

O Brasil, lembra Wenzel, havia se saído mal em Estocolmo. Vinte anos antes, as posições defendidas pelo regime militar transmitiam uma ideia de industrialização a qualquer custo. “Lembro da frase ‘Venham poluir o Brasil’ (dita por um ministro brasileiro durante a conferência de 1972). O governo queria mudar essa imagem”, recorda. Mais recentemente, o assassinato do ativista Chico Mendes, em 1988, também pesava contra o país perante as demais nações.

Também foi dentro de um esforço para melhorar a imagem do país que Collor convidou o prestigiado ambientalista José Lutzenberger para o cargo de secretário nacional do Meio Ambiente. Lutzenberger, por sinal, atuou ativamente na preparação da Eco-92, mas acabou deixando o governo três meses antes. Depois, tornou-se um crítico dos resultados da conferência.

Conforme Paulo Moutinho, o fato de o Brasil possuir uma biodiversidade riquíssima coloca-o em uma posição natural de protagonismo no debate ambiental em nível global. “Qualquer uma das convenções da ONU não vai atingir o seu objetivo se o Brasil estiver fora. Só na Amazônia temos 100 bilhões de toneladas de carbono. Isso equivale a uma década de emissão de gases de efeito estufa feita pelo mundo. Ou seja, sem o Brasil, a convenção do clima não vai para a frente”, colocou.

“Foi uma experiência existencial rara”

Referência na defesa do meio ambiente na região, José Alberto Wenzel assistiu à Eco-92 de dentro, literalmente. Geólogo de formação, Wenzel à época era professor de Ciências nos colégios São Luís e Sagrado Coração de Jesus e, meses antes, passou a assinar uma coluna na Gazeta do Sul, na qual repercutia as reuniões preparatórias e discutia os assuntos que seriam tema da convenção. Em função disso, conseguiu credenciamento para cobrir o evento in loco.

Como os custos de estadia no Rio de Janeiro seriam elevados, pediu apoio aos irmãos maristas, que lhe arranjaram um pequeno quarto anexo ao ginásio de esportes de uma escola, onde se instalou durante aqueles dias. Com a credencial de imprensa pendurada no pescoço, podia circular por todos os ambientes no Riocentro, à exceção das reuniões restritas. Com isso, viu de perto os chefes de Estado, como Bush e o então presidente de Cuba, Fidel Castro; e acompanhou a celebração dos acordos e os anúncios. Todos os dias, enviava informações via fax para a Gazeta e fazia boletins para a rádio, os quais sempre terminava da mesma forma: “Do Rio de Janeiro, centro do mundo, para a região de Santa Cruz do Sul.”

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Apesar da relevância dos movimentos que ocorriam no Riocentro, as melhores lembranças de Wenzel envolvem o evento que ocorria em paralelo no Aterro do Flamengo – o Fórum Global. Diferente da Eco-92, que era um encontro de estadistas e burocratas, o fórum foi organizado pela sociedade civil e o objetivo era justamente pressionar os donos do poder para que, ao contrário do que havia ocorrido em Estocolmo, o encontro produzisse um resultado efetivo. Ali, estavam centenas de entidades, e não apenas as diretamente ligadas à ecologia, mas também movimentos sociais e religiosos. O resultado foi uma diversidade fervorosa. “Tinha de tudo lá. Muitos achavam que só tinha poetas, exóticos. Na verdade, eram pessoas que realmente estavam interessadas em mudar o sistema. Tinha um euforia franciscana, um sentimento de amor à natureza”, recorda.

Mais do que uma missão profissional, a passagem pelo Rio representou um ponto de virada para Wenzel, então com 40 anos. Foi naquele momento, segundo ele, que decidiu ingressar na vida pública, inspirado pela ideia de que era preciso aliar o ativismo à diplomacia para fazer a diferença. Naquele mesmo ano, elegeu-se vereador pela primeira vez. Depois, tornaria-se secretário municipal de Saúde e prefeito. Hoje, atua junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). “Foi uma experiência existencial rara. Mudou a minha vida. Até hoje me emociono”, conta.

Em 2009, Wenzel ainda participou da Conferência do Clima em Copenhague, na Dinamarca. Já em 2012, voltou à Cidade Maravilhosa para a Rio+20.

Wenzel acompanhou a Eco-92 como jornalista e decidiu, no evento, iniciar vida pública. | Foto: Alencar da Rosa

Uma nova edição?

Após a conferência, criou-se a tradição de eventos globais para tratar de desenvolvimento sustentável a cada década. Em 2002, o Rio+10 ocorreu em Joanesburgo, na África do Sul. Já em 2012, o Rio voltou a ser sede, com o Rio+20. Nos dias 2 e 3 deste mês, o evento retornou à Suécia, com o Estocolmo+50. Nenhum dos momentos, porém, teve a magnitude e as pretensões da Eco-92.

Para José Alberto Wenzel, é urgente a discussão sobre novos acordos internacionais, a exemplo dos assinados no Rio. No seu entendimento, no entanto, um aspecto é fundamental: a participação popular. “Quando depende dos grandes mandatários, acaba ficando muito restrito a quem manda no mundo, ou seja, ao dinheiro. A força maior deveria ser da população, de forma ampla”, observa. Segundo ele, os últimos anos foram marcados por retrocessos, como flexibilização das regras de preservação e avanço do negacionismo. “Existem pessoas que até hoje acham que não tem incêndio, não tem desmatamento, não tem depredação”, critica.

Na mesma linha, Paulo Moutinho diz ser fundamental a conscientização da população jovem sobre problemas como o desmatamento, que, após um período de forte redução, entre 2004 e 2012, voltou a crescer recentemente. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o aumento do desmatamento na Amazônia em 2021 foi de 29%, o maior dos últimos 10 anos. “É preciso discutir como enfrentar um planeta aquecido, e um país que continuar na rota de desmatamento vai ter problemas de produção de alimentos e de falta d’água. Esperamos que essa juventude possa reverter esses problemas”, disse.

A força da união

O ambientalista Arno Kayser também esteve no Fórum Global em 1992. Na ocasião, acompanhou, como representante do Movimento Roessler para Defesa Ambiental, de Novo Hamburgo, uma comitiva que partiu do Rio Grande do Sul. No Aterro do Flamengo, deparou-se com uma estrutura de tendas e estandes e uma circulação de grupos de diferentes origens e matizes que revelavam a pujança do pensamento pró-natureza. “Foi uma experiência muito forte de consolidação das minhas convicções.

Muitas vezes, a luta ambiental parece algo solitário e, de repente, tu vê milhares de pessoas, falando mais de 30 idiomas diferentes, e todo mundo em uma certa sintonia”, recorda ele, que tinha 30 anos à época.
Nos dias em que passou no Rio, testemunhou uma série de momentos interessantes, incluindo um ato com Dalai Lama e dom Helder Câmara e outro com o líder indígena Raoni Metuktire, o Cacique Raoni.

Assistiu também a uma palestra do então senador Al Gore, ativista ambiental que depois se tornaria vice-presidente dos Estados Unidos, e a uma apresentação de Gilberto Gil, então militante do Partido Verde. À noite, ocorriam cultos das diversas religiões que estavam ali representadas. “E tinha também uns malucos, gente prevendo o apocalipse”, ri. Kayser ainda participou das passeatas que partiram do Flamengo e percorreram todo o Centro do Rio de Janeiro. “Ali vimos a força que tinha o movimento em prol da defesa da natureza no mundo inteiro”, lembra.

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