Dez anos depois do terremoto que praticamente destruiu o Haiti, em 12 de janeiro de 2010, pelo menos duas perguntas não puderam ser respondidas pela comunidade internacional. A primeira diz respeito à omissão da Organização das Nações Unidas (ONU) e do governo haitiano sobre o surto de cólera que, conforme informações obtidas nos meios acadêmicos, pode ter feito 50 mil vítimas, embora fontes oficiais afirmem que esta contabilidade fique em 9 mil ou 10 mil mortes. A segunda, e não menos importante, é: onde estão os US$ 11 bilhões que supostamente foram doados para a reconstrução do Haiti depois do abalo sísmico?
Os questionamentos não param por aí, e podem levar a ONU a um julgamento por um tribunal internacional. O arroio-tigrense Ricardo Seitenfus, PhD em relações internacionais e ex-chefe do escritório da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, expõe “em carne viva” o fracasso da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah).
Com conhecimento e coragem, ele aborda no livro A ONU e a Epidemia de Cólera no Haiti (Alameda, 2019, 214 páginas, R$ 46,00), lançado em português em dezembro de 2019, uma face completamente diferente para o grande público, acostumado a felicitar o governo brasileiro pela participação na operação. “Posso dizer que foi a pior operação de paz já realizada pela ONU no mundo. A comunidade daquele país, tão necessitada de ajuda pela enorme pobreza, recebeu pouco. Mas alguns ganharam muito, inclusive ONGs. A Cruz Vermelha Americana é uma dessas organizações que foram apontadas como tendo lucrado US$ 500 milhões”, afirma Seitenfus.
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Mas, afinal, a Minustah foi realmente a culpada pela epidemia de cólera no país? De acordo com Seitenfus, a resposta é sim e até vai além. “As Nações Unidas têm total responsabilidade e mentiram em documentos dizendo que era uma doença desconhecida que veio do mar. Falaram que as chapas tectônicas do terremoto desencadearam um processo que fez surgir a epidemia. Não reconheceram a doença, e isso dificultou diagnóstico e tratamento. As pessoas morriam em apenas quatro horas. Os médicos franceses dizem que entre 40 mil e 50 mil pessoas morreram, enquanto os americanos dizem que 9 mil morreram. A cólera continua e, na melhor das hipóteses, será curada em 2022. Somente muito tempo depois (em dezembro de 2016), Ban Ki-moon, secretário da ONU, desculpou-se. Camponeses do interior morreram sem saber o porquê.”
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O representante legal das vítimas de cólera no Haiti, Mario Joseph, afirma que Ricardo Seitenfus presta um serviço histórico às vítimas e a todos que se preocupam com a justiça internacional ou que creem no potencial das Nações Unidas para combater as doenças e promover os direitos humanos e o Estado de Direito no mundo. “Esta obra é o testemunho mais eloquente do respeito devido ao povo haitiano e à consciência universal. Em um estilo simples e claro, mas erudito, o autor narra a importação da doença, identifica as artimanhas da ONU para contornar a verdade científica e, deste modo, não se responsabilizar. Com esta obra, o processo está lançado. As Nações Unidas estão condenadas. As incontáveis vítimas aguardam reparação.”
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Coragem e conhecimento
Seitenfus afirma que, para escrever uma obra deste porte, com denúncias tão veementes, foi preciso conhecimento e muita coragem, pois “não é fácil desafiar os poderes instituídos”. Conforme ele, os brasileiros que lá estiveram, na intenção de ajudar um povo tão sofrido, ficaram em uma situação de constrangimento enorme. “Éramos os chefes do braço armado da Minustah. Um grande número de militares está, inclusive, no atual governo brasileiro. Ao invés de tentar uma solução, admitirmos os erros cometidos, nos acomodamos. Tomamos uma atitude covarde e política, obedecendo aos interesses dos Estados Unidos e das Nações Unidas. Isso é uma mancha no currículo das Forças Armadas”, aponta.
Ricardo salienta que duas ligações, uma do presidente americano na época, George W. Bush, e outra do primeiro-ministro da França, Jacques Chirac, para o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, alteraram os planos. A própria Constituição e a antiga tradição das Relações Internacionais Brasileiras, de diálogo e mediação de conflitos, foram corrompidas. “Até o dia 25 de fevereiro de 2004, o governo tinha uma posição de não intervir, afinal se tratava de uma questão interna de luta pelo poder. Nove dias depois, por intermédio do porta-voz da Presidência, fomos informados de que o Brasil enviaria 1,1 mil militares. Foi uma mudança a que todos tiveram de se adaptar. Fui ao Congresso Nacional para esclarecer as coisas. Nosso país, quando decidiu alterar a ideia inicial, levou consigo a maioria dos países da América Latina”, afirma.
O professor destaca que no miolo dessa mudança estava a vontade do Brasil de assumir uma diplomacia mais ativa no cenário internacional. “Aquela era uma questão de inteligência e informação. Questiono se os militares eram os melhores ‘emissários’ em busca da democracia”, diz ele, que complementa: “Muitos têm conhecimento, mas não têm coragem. Mas esse é o papel do intelectual. Não pertencemos a nenhuma capela, religião ou partido. Sou um escravo da ciência”.
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Laboratório desprezível
O professor relata que, quando o Brasil decidiu intervir no Haiti, alguns disseram que se tratava de um “grande laboratório para todos”. “Realmente foi um laboratório, porém errado. Acho vergonhoso se utilizar da desgraça do que foi e é o Haiti para ser um modelo de aprendizagem. Nos inferiram a ideia de que o Brasil iria para o Haiti para conquistar uma cadeira no Conselho de Segurança. Portanto, acreditavam que o caminho para Washington passava por Port-Au-Prince. Um enorme engano.”
Ao fazer um balanço, Seitenfus salienta que tanto a sua primeira obra sobre as falhas das Operações de Paz no país, intitulada Haiti: dilemas e fracassos (2013, Unijuí, 464 páginas), quanto o novo livro, que aborda a questão da cólera, apontam para os atores que contam as histórias, sendo necessário que os fatos narrados sejam pegos com “pinças”. “Fui representante da OEA no Haiti e vislumbrei o que estava acontecendo, mais fortemente a partir do terremoto, em 2010. Quando percebi que mandavam mais tropas, me perguntei: ‘Mas, afinal, a quem devo satisfação?’ Digo que respondi à minha consciência, aos fundamentos da própria instituição que me levou ao país e, sobretudo, à população que tão bem me acolheu”, conta.
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Custo alto pela verdade
Assim que tomou pé, ainda mais fortemente, dos erros cometidos pela Missão de Paz no Haiti, Ricardo Seitenfus passou a lutar, nos bastidores, contra um possível golpe de Estado. “Consegui impedir que isso acontecesse. Tomei decisões difíceis contrariando interesses dos Estados Unidos e de outros países, até que dei uma entrevista para um jornal na Suíça e isso custou meu cargo. Fiquei triste, é claro. No entanto, me senti feliz comigo mesmo, mas não com os resultados, pois afinal perdemos, sobretudo no que se refere às mortes inúteis ignoradas pela ONU, sem contar que as eleições tiveram resultados fraudados por outros países. Me opus a tudo isso, e fui limitado pelo poder relativamente pequeno da OEA, uma vez que contrariei as decisões americanas. Mas, ao mesmo tempo, ganhei em consideração dos haitianos, sei que sou querido por eles”, conta.
O livro A ONU a Epidemia de Cólera no Haiti nasceu da entrega de um relatório ao presidente daquele país à época. “Ele sugeriu que poderíamos publicar esses dados, mas logo depois, por pressão internacional, desistiu da ideia”, afirma.
A edição francesa foi lançada em 2018 no Haiti. Em 2019, foi feita a edição em português. Logo em seguida, em espanhol”. O mais “engraçado”, segundo Seitenfus, é que até o momento a ONU não se pronunciou a respeito das denúncias. “O único a se manifestar contrário, num jornal de circulação estadual, foi um militar. Mas eu não respondi. Afirmei que não posso responder a alguém que demonstrou nem sequer ter lido o livro para poder criticá-lo”.
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Nesta segunda-feira, 27, Seitenfus autografa o livro na República Dominicana.
A Minustah
Fonte: Ministério da Defesa
A Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) foi criada por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro 2004, para restabelecer a segurança e a normalidade institucional do país após sucessivos episódios de turbulência política e violência, que culminaram com a partida do então presidente, Jean Bertrand Aristide, para o exílio. O Brasil sempre comandou o componente militar da Missão (2004-2017), que teve a participação de tropas de outros 15 países, além do efetivo brasileiro de capacetes azuis da Marinha, do Exército e da Força Aérea.
O Conselho de Segurança da ONU adotou, em 13 de abril de 2017, a Resolução 2350 (2017), que estendeu pelos seus últimos seis meses o mandato da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah) e estabeleceu, a partir de 16 de outubro do mesmo ano, uma nova operação de manutenção da paz no país – Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no Haiti (Minusjusth), composta apenas por civis e unidades de polícia.
Ao longo dos 13 anos de atuação das Forças Armadas brasileiras, a população haitiana foi apoiada pela Missão na ocasião das duas catástrofes naturais que atingiram o país. No dia 12 de janeiro de 2010, um terremoto causou a morte de mais de 200 mil pessoas. Em 4 de outubro de 2016, o furacão Matthew causou inundações e deixou milhares desabrigados.
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O professor
Dono de um vasto currículo, Ricardo Seitenfus nasceu no ano de 1948, em Arroio do Tigre, então distrito do município de Sobradinho, situado na região central do Rio Grande do Sul. Em 1968, rumou para a Europa para uma viagem de iniciação e, se possível, de estudos. Possui graduação em Ciência Política (1973), em Economia do Desenvolvimento (1973) e em História Moderna e Contemporânea (1978), todas pela Universidade de Genebra, além de doutorado em Relações Internacionais pelo Institut des Hautes Etudes Internationales (IHEI), da mesma universidade (1980). Foi professor adjunto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1981-1989) e professor titular na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (1993-2016). Fundador e primeiro-secretário da Secretaria de Assuntos Internacionais do governo do Estado do Rio Grande do Sul. Foi vice-presidente da Comissão Jurídica Interamericana (CJI) da Organização dos Estados Americanos (OEA). Tem experiência na área de ciência política, com ênfase em política externa do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: Mercosul, relações internacionais, diplomacia brasileira, organizações internacionais, relações Brasil-Haiti e Direito Internacional Público. É autor de várias obras em diferentes idiomas (contando as reedições, são 31 publicações).
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