É uma tendência comum suspeitar do que não nos parece claro, temer o que não compreendemos. Diante do que não se encaixa na ideia de normalidade, tornamo-nos hostis. Mas essa é uma relação de interdependência: o normal só faz sentido se houver o anormal, o contraste indesejável, o “erro” identificado para confirmar que estamos certos. Assim como existe a luz, há a escuridão – o lugar onde habitam os monstros.
Mas, como o mundo é complicado, tudo pode se confundir. Você talvez já tenha ouvido falar de O sol é para todos, clássico da literatura norte-americana escrito por Harper Lee, que se tornou um filme também clássico. Atticus Finch (no cinema, Gregory Peck) é um advogado respeitado em Maycomb, pequena cidade sulista. Seus dois filhos pequenos gostam de explorar a vizinhança, sobretudo as redondezas de uma casa sempre fechada onde, dizem, vive um criminoso violento chamado Boo Radley. As crianças nunca viram o rosto de Radley, pois ele vive confinado nas sombras, mas sempre imaginam o quão pavoroso ele deve ser.
Enquanto isso, Atticus precisa defender Tom Robinson, um homem negro acusado de estupro. A vítima é uma mulher branca, mas o advogado logo desconfia que a história não é o que parece. Na medida em que o novelo se desenrola, descobre-se que há muito mais racismo e ressentimento do que crime no caso de Robinson. Sem querer forçar muito nos spoilers – mas já forçando –, vale dizer que Atticus, cidadão exemplar e reserva moral de sua comunidade, será execrado e insultado por muitos outros “cidadãos de bem” de suas relações, que agora preferem nem olhar para sua cara de “amigo dos negros”. Pois estamos no sul dos EUA, em 1932.
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Onde está a luz? Atticus Finch agora é uma anomalia no meio social do qual faz parte, o contraste indesejável. E também sua família, ameaçada por gente que anda com um fuzil sob um braço e uma Bíblia no outro. Porém, quando nos aproximamos do desfecho de O sol é para todos, Boo Radley aparece. Não o bandido cruel das lendas urbanas de Maycomb, mas apenas um homem com problemas psiquiátricos, isolado e sem amigos. Na hora decisiva, ele – um “monstro” no imaginário de sua localidade – vai apontar quem são e onde vivem os verdadeiros monstros. Livro clássico é assim: sua relevância não se perde.
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