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CASOS DO ARQUIVO

Oito anos de saudade e de luta por justiça

Foto: Alencar da Rosa/Banco de Imagens

Ana Júlia, Jorge, Ana Luiza e Ana Paula guardam reportagens da Gazeta sobre o caso

Já se passaram mais de oito anos e o tamanho da saudade é o mesmo da vontade de lutar por justiça. Em 14 de novembro de 2014, um dos acidentes mais devastadores registrados no Vale do Rio Pardo tirou a vida do casal Hugo Morsch, de 78 anos, e Herta Glicéria Morsch, de 75; da filha deles, Vitória Terezinha Morsch dos Santos, de 49; e ainda deixou em estado grave o marido de Vitória, Jorge Antônio dos Santos, de 51 anos, e uma das filhas desse casal, Ana Luiza dos Santos, que tinha 13 anos.

Bombeiros precisaram abrir o teto do Gol da família de Vale do Sol usando um desencarcerador | Foto: Banco de Imagens

Naquele dia, por volta das 18h30, os cinco familiares saíram de casa, nas proximidades da Igreja Centenária de Vale do Sol, em um Gol vermelho, em direção a Santa Cruz do Sul. No quilômetro 123 da RSC-287, ainda nos limites do município onde moravam, foram atingidos violentamente por um Vectra cinza, com placas de Santa Maria, que seguia no sentido oposto. Esse veículo era conduzido pelo tenente-coronel da Brigada Militar Afonso Amaro do Amaral Portella, na época com 55 anos.

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Em 28 de maio de 2015, ele foi indiciado pela Polícia Civil por triplo homicídio, lesão corporal grave e lesão corporal gravíssima, todos com dolo eventual – quando o agente assume o risco de matar. Em 26 de setembro de 2020, cinco anos e quatro meses após a conclusão do inquérito policial, a juíza Fernanda Rezende Spenner, da Vara Judicial de Vera Cruz, determinou que o tenente-coronel fosse julgado em júri popular. A Gazeta do Sul volta no tempo, na oitava reportagem da série Casos do Arquivo, para relembrar o drama e a luta por justiça vividos pela família Morsch-Santos, que clama pela marcação de uma data para o julgamento, antes que o crime, que deixou marcas profundas e eternas, prescreva.

Socorristas tiveram de escolher a quem salvar

A ideia inicial dos moradores de Vale do Sol, no dia 14 de novembro de 2014, uma sexta-feira, era realizar um passeio em família. O objetivo era comparecer ao aniversário do cunhado de Vitória, marido da irmã dela, em Santa Cruz do Sul. No Chevrolet Meriva cinza da família, levariam ainda a outra irmã de Vitória, Ledi, hoje falecida, que sofria de esclerose lateral amiotrófica (ELA), e seus pais Hugo e Herta.

A cadeira de rodas de Ledi já estava no porta-malas do espaçoso Meriva quando, subitamente, ela desistiu de ir ao aniversário em Santa Cruz, preferindo ficar em casa. Com apresentação do coral marcada, Ana Luiza dos Santos, então com 13 anos, filha mais nova de Jorge e Vitória, não estava muito à vontade para cantar. Uma dor de garganta a incomodava e a vaga que surgiu no carro, para ir ao aniversário, foi o que faltava para ela avisar o regente de que não iria ao concerto, e sim passear com a família.

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Por não precisarem mais levar a cadeira de rodas da irmã de Vitória, a família decidiu deixar o Meriva em casa e pegar o Gol modelo “bolinha” do avô. Minutos após saírem, na RSC-287, ocorreu a colisão que tirou a vida de Hugo, Herta e Vitória, e deixou Ana Luiza e Jorge Antônio em estado grave, o último com sequelas permanentes.

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Mais cedo, naquele mesmo 14 de novembro de 2014, a outra filha do casal, Ana Paula dos Santos, então com 23 anos, rainha do município, havia retornado do trabalho e conversado com a mãe Vitória sobre a rotina do dia. Antes de sair para pegar o ônibus rumo à aula na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), onde cursava Direito, Ana Paula, hoje com 31 anos, deu um abraço na sua mãe. Seria a última vez que as duas se veriam.

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A ideia era reencontrar a família horas depois, já na comemoração em Santa Cruz , mas uma ligação do namorado mudou os planos. Ana Paula ficou sabendo do acidente e um primo dela foi buscá-la na Unisc. A ideia inicial era ir até onde a colisão havia acontecido, mas informações do rádio já diziam que o trânsito estava congestionado no local. Foi então que eles resolveram seguir até o Hospital Santa Cruz.

Na casa de saúde, chegou uma ambulância trazendo Ana Luiza e o tenente-coronel. Foi quando ela soube que a avó e o avô haviam falecido no local e o pai estaria no meio das ferragens. De sua mãe, naquele momento, ainda não tinham informações. A outra irmã, Ana Júlia dos Santos, na época com 20 anos e hoje com 28, chegou ao ponto do acidente vinda de Vale do Sol. Ela correu pelo asfalto até chegar no local e, quando retirou um dos panos, viu sua mãe morta.

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Diferentemente de Herta e Hugo, Vitória Terezinha não havia falecido na hora. No entanto, segundo a família, uma decisão precisou ser tomada. Os funcionários da ambulância chegaram a colocar oxigênio nela, mas havia poucos aparelhos. Então, tiveram que escolher quem achavam que iria sobreviver. Acabaram tirando o oxigênio da mãe e colocando no pai.

Sobrevivente acompanha processo com ansiedade e angústia

Já faz mais de oito anos, mas as lembranças do acidente permanecem vivas na memória de Ana Luiza, sobrevivente. Após tanto tempo, ela, hoje com 22 anos, admite que tem medo de que o crime prescreva e o causador não seja responsabilizado. A jovem conta que acompanha com ansiedade e angústia o andamento do processo.

“Em decorrência dessa longa espera, vamos nos mutilando diariamente, revivendo esse episódio tão difícil nas nossas vidas. Não conseguimos ‘deixar pra lá’, simplesmente porque não podemos fazer isso. Aquele homem, naquela tarde, tirou a vida da minha mãe, da minha avó, do meu avô e tirou também muito da vida do meu pai. Tirou a independência dele, o poder de caminhar, a intimidade, pois ele nunca mais conseguiu nem sequer tomar banho sozinho”, comentou Ana.

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Para ela, é angustiante ver que, desde que a sentença de pronúncia foi proferida pela juíza, ocorreram recursos atrás de recursos e ainda não há uma data para o julgamento. “Não conseguimos superar o que aconteceu, a perda, o luto, pois é uma história, um processo, uma luta que ainda não foi superada. Enquanto não tivermos a finalização desse processo, com a penalização do acusado, nós nunca iremos superar o acidente”, disse ela.

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“Até penso que superar mesmo nunca iremos conseguir, mas precisamos colocar um ponto final nessa história, tentar curar e cicatrizar essa ferida que foi aberta dentro do coração de nossa família. Porque para podermos cicatrizá-la, precisamos primeiramente que ela se feche, o que não acontece com o processo rolando ainda”, complementou.

Um dos fatos mais dramáticos para a família, segundo Ana Luiza, é ver o pai se esforçando para falar, perguntar algo e, por vezes, ela e as outras filhas não conseguirem entender. “É triste ver às vezes ele desistindo de tentar falar, irritando-se por não conseguir. Além disso, o autor tirou de mim minha melhor amiga, minha protetora. Me privou de poder crescer ao lado da minha mãe. Me privou de diversos aprendizados e conselhos que eu poderia ter recebido, tanto da minha mãe quanto do meu pai. E o autor não foi privado de nada, nem sequer penalizado por nada.”

Ana Luiza revelou que faz tratamento terapêutico em virtude da dor e angústia que vivencia desde o dia 14 de novembro de 2014. “Buscamos a ajuda de uma assistente de acusação, a Tatiana Borsa. Ela está fazendo tudo que está em seu alcance para que esse julgamento ocorra o mais rápido possível. É a nossa última esperança”, finalizou a sobrevivente.

“Corre o risco de prescrever”, diz Borsa

Advogada defende família Morsch-Santos | Foto: Arquivo Pessoal

A advogada criminalista Tatiana Borsa, que ficou conhecida por defender no júri da Boate Kiss o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da Banda Gurizada Fandangueira, e anular, junto das outras bancadas de defesa, o julgamento histórico, falou à Gazeta sobre o andamento do processo envolvendo a família Morsch-Santos. Segundo ela, atualmente, após a sentença de pronúncia da juíza Fernando Rezende Spenner, a defesa do réu entrou com recurso em sentido estrito, que já foi julgado e negado, confirmando a decisão da magistrada.

Seguem pendentes outras decisões quanto a recursos interpostos no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, o que vem atrasando ainda mais o processo. “Um caso que deixou tantas vítimas corre o sério risco de prescrever e o acusado não ser sequer julgado. É um absurdo. Já se passaram quase nove anos, e se continuar nesse ritmo, vai prescrever”, salientou Tatiana Borsa.

O causador do acidente, Afonso Amaro do Amaral Portella, hoje com 63 anos, havia participado de uma festividade em Rio Pardo durante aquele dia, em alusão ao Dia do Inativo da Brigada Militar. No local, almoçou e recebeu placa em homenagem aos serviços prestados no município, onde atuou em cargo de comando. Em setembro de 2013, já havia recebido o título de Cidadão Honorário da Cidade Histórica.

Um dia antes do acidente, Portelinha – como era conhecido – havia participado de um jogo de futebol entre colegas de farda em Santa Cruz. Ao final da tarde de 14 de novembro de 2014, quando voltava para sua casa em Santa Maria, no quilômetro 123 da RSC-287, invadiu a pista contrária e acertou o Gol onde estava a família Morsch-Santos.

Réu sob efeito de bebida alcoólica

A investigação da Polícia Civil apontou que o Vectra de Portelinha estava em alta velocidade e invadiu a pista contrária. O inquérito diz ainda que ele estaria sob efeito de bebida alcoólica. “A gente concluiu que, da forma como agiu, ele previu o resultado e assumiu o risco de matar”, afirmou o delegado responsável pelo caso, Marcelo Chiara Teixeira, na época do indiciamento. Em depoimento, um funcionário disse que coletou três frascos de sangue para o laboratório e que a presença de álcool no sangue pôde ser verificada em qualquer uma das três amostras.

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Segundo o funcionário, Portella foi comunicado acerca do que se tratavam os exames e assinou um termo de autorização. Para a promotora Maria Fernanda Cassol Moreira, “ao conduzir veículo automotor após ter ingerido bebida alcoólica, em velocidade excessiva para o local e, ao invadir a pista contrária, ignorando os veículos que transitavam naquele sentido, o denunciado assumiu, conscientemente, o risco de causar a morte e as lesões corporais das vítimas, o que efetivamente se concretizou”.

Na denúncia do Ministério Público, cita também que a colisão “ofendeu a integridade corporal de Jorge Antônio dos Santos, produzindo-lhe lesões corporais de natureza gravíssima, enfermidade incurável e incapacidade permanente para o trabalho”. Hospitalizado por quatro meses, Jorge Antônio, hoje com 59 anos, traz na pele as marcas do acidente. No crânio, tem uma válvula com a função de drenar eventuais formações de líquido no cérebro, sintoma decorrente da colisão.

Ele quebrou o tornozelo, e o lado direito do corpo ficou comprometido. Durante a estada no hospital, drenos foram colocados para sugar o líquido no pulmão. Também contraiu meningite, trombose e infecção no sangue. Ao ser questionado pela juíza, o tenente-coronel Afonso Amaro do Amaral Portella disse que, na festividade da qual participou em Rio Pardo, havia cerveja com álcool para venda; por isso, levou cervejas sem álcool e somente ingeriu essas.

Afirmou que tem hepatite, que degenera seu fígado e não lhe permite ingerir bebidas alcoólicas. A defesa do tenente-coronel pediu anulação do exame de urina que atestou consumo de álcool, alegando que teria sido feito enquanto Portella encontrava-se em estado de inconsciência, incapaz de exprimir sua vontade. Em seu despacho, a juíza observou que há prova de que o réu esteve consciente e assinou termo permitindo a realização do teste. No documento consta que “não bastasse isso, a embriaguez foi confirmada pelos demais elementos de prova produzidos nos autos, em especial pelas testemunhas que estavam no local dos fatos”.

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