Durante a quarentena aproveitei para colocar as leituras em dia e finalizei um livro que tinha curiosidade de ler, para entender seu contexto histórico: Malleus Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras. Escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, o volume é uma espécie de manual de como perseguir, torturar e, por fim, assassinar acusados de bruxaria, dos quais três quartos eram mulheres. Tudo, é claro, devidamente envolto em camadas de subtexto religioso e pseudojurídico para dar uma aparência de legalidade, apesar dos absurdos contidos ali. Com a rica introdução de Rose Marie Muraro, desde o início da leitura é fácil perceber os impactos gerados ainda hoje pela Inquisição, que só terminou oficialmente em 1965.
Em resumo: foi uma leitura cansativa e um livro que li para passar raiva. Não precisamos nos ater a muitos detalhes sobre a obra, além de contabilizar que seus preceitos foram responsáveis pela morte de pelo menos 100 mil mulheres em vários países. Estudiosos e historiadores apontam números na casa dos milhões. Mas, independentemente do número exato, foram milhares de mulheres torturadas de forma bárbara e mortas com requintes de crueldade, afogadas, desmembradas, queimadas vivas na fogueira. O Estado teocrático era ameaçado pelo acesso das mulheres às artes e à cultura no fim do século 14, e a resposta foi uma caça às bruxas articulada pela classe dominante, ligando a transgressão sexual à transgressão da fé e punindo as mulheres por isso.
Acusadas de causar desastres naturais, colheitas ruins, estiagem, epidemias e até esterilidade ou impotência, foram mortas 100 mil mulheres. Por serem camponesas, idosas, viúvas, por não terem filhos, pela pobreza que levava à mendicância ou à prostituição, porque viviam sozinhas. Mas nenhuma categoria de mulheres foi mais acossada nesse período do que as parteiras. As mulheres que ousavam aprender as propriedades de ervas e plantas, e as técnicas mais seguras e menos dolorosas para trazer novos seres humanos a este mundo. Profissionais que aprendiam com a prática e compartilhavam seu conhecimento com outras mulheres, desafiando um mundo onde apenas aos homens eram permitidos o estudo formal e a liderança.
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Em um trecho de seu livro, Kraemer e Sprenger dividem suas colocações em três partes. A primeira diz respeito às mulheres em geral e sua falta de inteligência e moral; a segunda parte, às mulheres que se entregam à bruxaria, “e, por fim, a terceira, específica às parteiras, que superam todas as demais em perversidade”. O texto insinua toda sorte de crueldade e atos malignos causados por essas mulheres. Mas por que ir tão longe para demonizar uma prática que salvava vidas de mulheres e bebês? Porque as parteiras e as curandeiras eram as mulheres com mais conhecimento, e, portanto, com mais poder. E elas estavam dispostas a compartilhar o que sabiam. O que hoje sabemos se tratar de ciência foi tratado então como magia.
O especial desta edição da Gazeta do Sul, assinado pelo colega Rodrigo Nascimento, atua como uma ode às parteiras. Recomendo a todos a leitura da matéria, que relembra as histórias de algumas dessas incríveis mulheres que atuaram na nossa região, pelas mãos das quais grande parte de nossa população nasceu. Elas revivem hoje no trabalho das doulas, parteiras modernas que perpetuam um legado de cuidado e sensibilidade. Às parteiras e sua sabedoria ancestral, por sua força e trabalho, devemos nossa perpétua gratidão.
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