Ao longo de meses e anos, durante a estada em Porto Alegre, mantive o hábito de, aos sábados, fazer o caminho ao longo da Rua dos Andradas rumo à banca de jornais e às livrarias e aos sebos do Centro Histórico. Deixava o prédio, nas imediações da Praça Brigadeiro Sampaio e seguia no sentido da Praça da Alfândega. Mal dava dez passos, e com muita frequência, na primeira mesa praticamente na porta de acesso a uma das lancherias, defronte ao prédio da Marinha do Brasil, deparava-me com um senhor.
Claro que eu prontamente o reconhecia. E em muitas ocasiões o saudava, cumprimento que retribuía. Na quase totalidade das vezes, portava boné, um copo servido a sua frente e uma garrafa de cerveja no suporte de isopor. Sozinho, quieto, sereno, olhar estendido pela porta, para a rua, para o movimento, para os prédios ao longo da calçada do outro lado. Anônimo, oculto na multidão, mas claramente em paz, tranquilo.
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Ninguém menos do que o porto-alegrense João Gilberto Noll, um dos mais importantes autores gaúchos e brasileiros, talvez o escritor nacional mais aplaudido e incensado mundo afora, acolhido em programas para autores visitantes. E premiado.
Ali, misturado aos frequentadores de rotina de um bar de calçada, era apenas mais um cliente, e como tal se fazia e se permitia ser atendido, servido. Um dia, conversando com um dono do local, este me disse: é um ótimo cliente, sempre paga direitinho. Claro que ignorava por completo que tinha à mesa a honra de servir um multipremiado, que recebera nada menos do que seis (6!) vezes o Jabuti, o mais importante prêmio da literatura brasileira.
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Naquele bar, ao passar diante dele, muitas vezes o cumprimentei. Em mais de uma ocasião, parei, e por alguns momentos conversamos, trocando impressões sobre literatura, e até livros com ele deixei. Sempre simpático, acolhedor, gentil. Quando me apresentei como jornalista, e informei do interesse em entrevistá-lo para a Gazeta do Sul, prontamente me informou seu e-mail e também o telefone de seu apartamento, para combinar a visita, que seria feita com fotógrafo, a fim de assegurar as imagens para ilustrar a conversa. Em contato por telefone, só faltava alinhar a data da visita.
Então, ao final de março de 2017, veio a notícia. Noll fora encontrado em seu apartamento, morto. A entrevista que estava alinhavada nunca ocorreu. E a cada nova passagem diante da porta do bar na Andradas, a primeira mesa, vazia, faz lembrar dele. De um autor de estilo raro. Não só um bom cliente; mas um escritor de primeira qualidade.
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Nascido em Porto Alegre em 15 de abril de 1946, João Gilberto Noll morreu em 28 de março de 2017. Posteriormente, no computador doméstico no qual costumava lidar na produção de seus textos, foi localizado um arquivo de contos e textos ainda inéditos, justamente com os quais estava trabalhando. Esse acervo totalizava 26 contos, ao que tudo indica já praticamente finalizados, e o início de um novo romance.
Agora, a Record, sua editora, acaba de lançar esse conjunto sob o título de Educação natural: textos inéditos e póstumos, em 203 páginas, a R$ 59,90. Tem-se, assim, mais um recorte da criação artística de Noll, mesmo após a sua morte. A obra vem se juntar a seus estupendos romances, que formam um conjunto único na literatura brasileira e talvez mundial.
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Noll sempre foi um autor que trabalhou com relativa concisão, não apenas porque tinha na narrativa curta, de contos, uma via de expressão, mas porque os seus romances dificilmente se estendem além de 200 páginas, nas quais a densidade de enredo e a relevância, a atualidade e o alcance existencial dos temas são plenos.
Formado em Letras pela Ufrgs, Noll estreou em 1980, com o livro de contos O cego e a dançarina, mesmo ano em que a santa-cruzense Lya Luft surgiu para a literatura com o romance As parceiras. Nos anos seguintes, lançou obras fundamentais e viscerais, como A fúria do corpo, Bandoleiros, Rastros do verão, Hotel Atlântico. Até chegar ao século 21, no qual seu nome estava consagrado dentro e fora do País, com várias temporadas como escritor convidado ou residente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Em vida, seu último romance foi Solidão continental, de 2012.
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Educação natural: textos inéditos e póstumos, de João Gilberto Noll. Rio de Janeiro: Record, 2022. 203 p. R$ 59,90.
“De uma só vez ele olhou tudo. Poderia ter dado um tempo para coçar a cabeça, ou respirar de olhos fechados, voltando, logo depois, à varredura da paisagem. Pois excelente ângulo ele tinha, foco bem-definido, vontade… Mas naquele mirante, como o vale a seus pés, apreciou tudo de uma tacada só. Num segundo instante ficou meio sem graça, feito tivesse ido com demasiada sede ao pote. E agora, o que diria para o amigo administrador da fazenda, que o tinha levado até aquelas alturas para que soubesse compor com o que ele, o criador de gado, afirmava como a “visão do Paraíso”? Sim, este até não precisava ansiar tanto assim a vista, pois fora criado lá mesmo, um verdadeiro guri do mato. O novato no vale, porém, precisava se transfigurar como o ardor da visita magnífica. Os dois sabiam em silêncio. Ambos queriam assim.”
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