A prisão é a consequência de uma tomada de atitude ilegal. Contudo, no Brasil não existe prisão perpétua. Isto é, o ser humano privado de liberdade, amanhã ou depois, voltará ao convívio na sociedade. Para evitar a reincidência e tentar fazer com que esse cidadão consiga se reinserir socialmente, e até ter uma chance no mercado de trabalho, equipes de casas prisionais, como do Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, investem em atividades dedicadas ao trabalho prisional para oportunizar novas experiências aos homens e mulheres, fazendo com que voltem para a rua com alguma instrução.
O trabalho prisional, no Presídio de Santa Cruz, é o carro-chefe de muitos avanços, como as melhorias no aspecto físico da unidade. Como forma de economia para o Estado, a mão de obra para reformas é toda dos chamados “laranjinhas” – apenados que passam por uma triagem e, vestidos em uniformes cor de laranja, começam a atuar no serviço externo, construindo muros, garagens e outras estruturas. Mas não é só isso. Os avanços feitos no presídio já foram tantos que hoje, no local, funciona uma horta de 6.825 metros quadrados, uma marcenaria e uma oficina de costura que confecciona máscaras de proteção da Covid-19 e acessórios para uma empresa que atende motociclistas.
Como funciona
O Termo de Convênio é feito entre a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) e o empregador. O Estado representa o preso, que é regido pela Lei de Execuções Penais, não estando sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho.
Publicidade
A titular da 8ª Delegacia Regional Penitenciária, Samantha Longo, explica que 75% do salário-mínimo é destinado ao detento e 10% para fundo de investimento, sendo dividido da seguinte forma: 20% fica de pecúlio, ou seja, o preso pode ter acesso quando receber a liberdade; 55% o detento recebe todo mês e 10% vai para o fundo penitenciário. “O investimento da empresa, por preso, é de 85% em relação ao salário-mínimo. Ocorre a contratação do preso pela empresa, contudo a empresa, além de ter um investimento menor – 85% do salário –, também não tem encargos trabalhistas”, detalha.
A delegada destaca que esses convênios também podem ser realizados com prefeituras, como é o caso de Cachoeira
do Sul e Lajeado, que possuem esse tipo de dispositivo para uso de mão de obra prisional junto às demandas do município.
Horta para alimentação e para doação
No final de 2015, a horta do presídio começou com apenas um pequeno espaço, com alguns canteiros e verduras plantadas. Hoje, o cuidado do cultivo é todo de um apenado de 44 anos, que trabalha sozinho no terreno de 6.825 metros quadrados. Alface, couve, temperos, chás, pés de laranja e bergamota são algumas das variedades cultivadas. Trabalhador do interior, o homem diz que gosta de mexer na terra. “Eu sou colono, sempre tive horta. Entre três irmãos, já plantamos 120 mil pés de tabaco, fora hortas, milho, feijão, criação de porco”, conta, relembrando da época em que estava em liberdade. Quando começou a trabalhar no local, em 2018, o preso passou a dar maior atenção à atividade. “Quando eu entrei, a horta era bem pequena, o resto era mato. Limpei tudo, fiz mais canteiros lá para baixo. A terra aqui é boa.”
Publicidade
Segundo o diretor do Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, Cássio Roberto Bandeira, além do aproveitamento das frutas e legumes na alimentação dos guardas e também dos apenados, parte dos produtos naturais é doada. “A gente doa para o Hospital Ana Nery e também para a Associação de Apoio a Pessoas com Câncer (Aapecan). A horta aqui começou com a doação de um produtor de mudas, e as menos vendidas a gente ia buscar em Sobradinho. Começamos a plantar e a partir dessas mudas ele mesmo, o preso, foi dando sequência.”
LEIA TAMBÉM: Presídio de Santa Cruz passa a fornecer alimentação individual para apenados
É TAMBÉM QUESTÃO DE CONFIANÇA
A atividade laboral possibilita também remissão de pena. Aledison Picolini, chefe de segurança do presídio, explica que são três dias trabalhados por um de remissão. “É um voto de confiança. Às vezes estão capinando a calçada e eles optam por continuar trabalhando. Eles têm essa perspectiva de sair daqui com a dívida com a sociedade quitada. Sabem que cometeram um erro, que devem pagar por esse erro, só que eles optam por trabalhar, sair daqui pela porta da frente e recomeçar as suas vidas lá fora. É um serviço diferenciado, toda a conservação do prédio, a manutenção e ampliação de critérios de segurança da cadeia, como muros, foram feitos através do trabalho prisional.”
Porém, os presos que se propõem a trabalhar muitas vezes acabam se indispondo com os colegas de galeria, como explica o diretor Cássio, mostrando o espaço onde ficam os trabalhadores externos. “Os presos que trabalham ficam aqui. Temos que separá-los por causa da segurança deles, porque tem toda uma ideia de que eles estão trabalhando para os guardas, os outros presos às vezes têm esse preconceito. E outra por segurança nossa, porque, por mais que tenha toda a triagem, pela psicologia, assistência social, chefia de segurança, resolvemos mantê-los aqui para não estar sempre deslocando eles do alojamento de lá até aqui.”
Publicidade
MAIS DE 50 MIL MÁSCARAS
A oficina de costura na ala feminina do Presídio de Santa Cruz do Sul teve início em 24 de abril de 2020, logo no começo da pandemia no Rio Grande do Sul. Desde lá, houve a produção de 52 mil máscaras de proteção contra a Covid-19, que foram doadas a trabalhadores da área da segurança pública e para a comunidade.
Em abril deste ano, a oficina ganhou mais uma função. As apenadas trabalham, de segunda a sexta-feira, para uma empresa de confecção de acessórios para motocicletas através de um “termo de convênio” – instrumento que possibilita a entidades privadas oferecerem trabalho remunerado ao preso. “Hoje são seis apenadas trabalhando. Nos finais de semana, estão mais duas na edição do curso corte e costura nível básico, com a Igreja Universal”, diz a chefe de segurança do Anexo Feminino de Santa Cruz do Sul, Juliana Affonso.
Presa por tráfico de drogas, como a maioria das mulheres privadas de liberdade em Santa Cruz, uma detenta de 37 anos conta que aprendeu a costurar no presídio em uma oficina que produzia pufes e almofadas. Quando começar a ganhar a remuneração, ela pretende enviar o valor para os quatro filhos. Sem visitas desde o início da pandemia, comenta também que teve uma neta quando já estava na cadeia. “Não conheço ela ainda. O tanto que eu queria uma netinha e nem soube ainda como é ser avó.” Sobre o futuro, ela já sabe o que quer. “Eu fico pensando o que vou fazer quando sair, porque eu não quero mais voltar para a vida que eu tinha. Isso eu não quero mais.”
Publicidade
Outra mulher, de 41 anos, que também cumpre pena por tráfico, conta que a mãe tinha máquina de costura em casa, por isso já possuía certa experiência. Ela diz que se sentiu contente em poder ajudar na confecção das máscaras. “A gente faz em torno de 350, 400 máscaras por dia.”
Rede de apoio
Dois psicólogos, Paula Cazarotto e Gustavo Hamann, e duas assistentes sociais, Graziela Hamann e Daniela Vieira Rodrigues, compõem o setor técnico do Presídio de Santa Cruz do Sul. A dificuldade maior é com as presidiárias, diz a assistente social Graziela. “No momento que a gente tira o ócio, a saúde mental delas melhora muito. A mulher presa dá muito mais trabalho que o homem, principalmente pelas questões familiares, de filhos que acabam ficando com outras pessoas, e isso tumultua bem mais. E a questão do trabalho vem para acalmar exatamente isso, tirá-las da cela, que é algo bem difícil, porque elas acabam querendo ficar recolhidas naquele sofrimento”, conta.
Paula Cazarotto relata que, quando os apenados entram no presídio, após os 14 dias de isolamento imposto pela pandemia, participam de uma triagem de saúde para, se for o caso, encaminhálos ao trabalho. “Fazemos uma análise, conversamos, e quando ele tem um perfil de trabalho e demonstra um interesse, a gente já tem uma conversa para esse lado. Conversamos ainda com a administração, a chefia de segurança também avalia. E se tem uma possibilidade, uma oportunidade aberta, ele é encaminhado para a parte inicial de trabalho, na cozinha.”
Publicidade
A equipe de psicologia também avalia questões de dependência química e saúde mental. “Nas triagens, a gente procura avaliar se esses presos que dão entrada são usuários de drogas, se já tinham algum acompanhamento, se eles têm algum tipo de transtorno que demande alguma intervenção. A gente vai fazer uma primeira avaliação, e essas triagens ocorrem junto com um médico”, explica o psicólogo Gustavo Hamann.
O apoio voluntário fica por parte do Conselho da Comunidade, presidido pelo advogado Roberto Tailor Bandeira. “O grupo se reúne uma vez por mês. Como agora veio a pandemia, a gente não tem se reunido. Mas por exemplo, semana passada teve um problema com a máquina de lavar roupas, aí conseguimos uma doação. A gente apoia ajudando nessa manutenção”, observa Bandeira. O Conselho da Comunidade é responsável por gerir também as verbas de penas alternativas que são destinadas ao presídio, e que são aplicadas em melhorias na estrutura da unidade.
Mestre carpinteiro
Em 2020, logo no início da pandemia, o proprietário da empresa Mestre Carpinteiro, Fabrício Lopes Rodrigues, de 30 anos, resolveu levar seu empreendimento para dentro do Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, também por meio de um convênio. Sem precisar pagar aluguel, mas arcando com a remuneração dos apenados, a oportunidade veio a calhar no momento de crise. “Estou muito satisfeito. Poder incluir essa parte de ressocialização dos presos e também poder repassar e multiplicar o conhecimento no setor de madeira, que é uma arte, um trabalho manual. Tem muita coisa que a gente consegue passar”, conta o empresário.
Até o momento, são quatro apenados atuando na fabricação de móveis de madeira. “Muitos deles dizem que, se tiverem a oportunidade, querem continuar trabalhando. Eles ganham uma remuneração, eu pago para o Estado e o Estado repassa um valor para eles.” Na empresa há um ano, um dos detentos, de 49 anos, nunca havia feito trabalhos com madeira. “Aprendi aqui. Eu acho que é uma oportunidade tanto de aprender quanto de remissão. Penso em
continuar trabalhando nisso”, revela.
Quando um móvel fica pronto, o sentimento é de orgulho. “É que a gente já começa desde a parte mais grossa, aí só vem aqui para dentro para finalizar”, comenta. Além disso, os móveis são fabricados com madeira de demolição, o que representa mais sustentabilidade para o meio ambiente.
A LEI DE EXECUÇÃO PENAL
Cristiano Cuozzo Marconatto, mestre e professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e major da Brigada Militar, explica que todas as questões referentes à execução das penas decorrentes de condenações definitivas são reguladas pela Lei n. 7.210/84, a Lei de Execução Penal (LEP). “Os artigos 28 a 37 regulam as questões referentes ao trabalho interno e externo dos apenados, tendo uma finalidade educativa e produtiva, como um dever social e uma condição de dignidade humana, a contribuir para sua reintegração à sociedade. Há a remissão da pena pelos dias trabalhados à proporção de um dia de pena remido para cada três dias trabalhados, como
forma de incentivo ao trabalho e reinserção social gradual, a partir da criação de novos vínculos com o meio externo e novas aptidões lícitas”, frisa Marconatto.
O professor destaca que o trabalho prisional é uma condição específica, prevista na Lei de Execução Penal, que regula horários, circunstâncias do trabalho, remuneração e direitos assistidos aos presos que optarem por trabalhar. “Eles são plenamente assistidos no que tange à garantia de direitos inerentes à condição específica que lhes permite o acesso ao trabalho, ainda que segregados em decorrência de condenação criminal. Portanto, trata-se de questão especial onde são assistidos direitos inerentes à condição em que desenvolvem as atividades laborativas e na qual gozam de proteção estatal, ainda que sem a manutenção de vínculo celetista.”
Para Marconatto, o trabalho prisional é de suma importância. “O estudo dentro do sistema prisional também é incentivado, possibilitando inclusive a remissão. Assim, tanto o trabalho quanto o estudo são mecanismos que irão possibilitar aos presos novas oportunidades e novos meios de subsistência fora do sistema prisional. Isso contribui para interromper o ciclo vicioso de nova incidência criminal fora do cárcere, que acaba gerando altos índices de reincidência no Brasil. A fim de romper essa realidade, o trabalho se reveste de ferramenta que irá permitir ao preso novas oportunidades e uma ocupação lícita ao deixar o sistema prisional”, considera.
LEIA MAIS: Presídio de Santa Cruz consegue manter Covid sob controle