Andei intrigado, esta semana, com certo clima de mistério que se instalou entre as crianças lá em casa. Passaram várias horas encerradas em seus quartos, às voltas com atividades secretas sobre as escrivaninhas, que se apressavam em esconder ao notar minha aproximação. Também andaram reunindo-se para confabulações igualmente sigilosas, cujo teor desvanecia-se em silêncios angustiantes quando eu, ouvidos aguçados, posicionava-me estrategicamente por perto.
Afinal, o que estariam tramando, de tão importante a ponto de sacrificarem boas horas do sol no quintal, neste veranico de agosto?
Até que – memória que custa a funcionar às vezes – dei-me conta: aproxima-se o Dia dos Pais e as crianças, seguindo a tradição que precede as datas especiais, certamente estão às voltas com a produção dos cartões e das homenagens com as quais me agraciarão neste domingo. A partir de então, adotei postura respeitosa ante seus mistérios, para não bancar o estraga-prazeres que arruína as surpresas.
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Mas estou na torcida para que, desta vez, não apresentem a canção O Ronco do Papai, pela qual acabei nutrindo certo desgosto. A música, famosa nas vozes de Leandro & Leonardo, começa assim:
Ronca, ronca, ronca
Roncador
O ronco do papai
Parece um motor
Ronca, ronca, ronca
Faz um barulhão
Roncando ele parece
Um avião!
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E a canção segue descrevendo uma série de problemas ocasionados pelo ronco do papai, que impede a mamãe de assistir à novela – ameaçando até mesmo o casamento –, atrai vizinhos revoltados ao portão de casa e, enfim, não deixa ninguém dormir. A primeira vez que a ouvi, claro, enchi o peito de orgulho pela performance das crianças e comovi-me com o final da música:
No ronco ele é mesmo
Um grande campeão
Mas é nosso papai
Do coração!
Também fiquei tranquilo ao constatar que, considerando a letra, não sou o único pai que ronca – pelo contrário, o ronco, a julgar pela canção, é uma condição à paternidade. Felizmente, a Patrícia nunca ameaçou expulsar-me de casa devido ao ronco, tampouco provoquei manifestações iradas em nossa rua. Mas não são poucas as queixas. Uma das mais recentes partiu da Ágatha, a caçula.
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– Levei um susto noite passada – veio me contar, dias atrás. – Acordei com um barulhão, até achei que tinha um monstro rugindo no quarto de vocês e fui conferir. Era tu, roncando.
– Ora, Ágatha, que exagero… – tentei amenizar.
– É sério, pai. Parecia um trator. – E, em tom zombeteiro, passou a cantar a famigerada canção O ronco do papai.
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O que me incomoda na canção é que os papais têm virtudes, além do ronco, que a letra não contempla.
Afinal, quem conserta o lastro da cama, quebrado quando as traquinas decidem dançar sobre o colchão?
Quem conserta as Barbies, eventualmente lançando mão de arame, quando pernas ou braços soltam-se do tronco da boneca?
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Quem remove, ao custo de muito esforço, as rodinhas das bicicletas quando as pequenas ciclistas adquirem, enfim, o equilíbrio ao pedalar?
Quem franqueia às gulosas o acesso a mais um doce, mesmo depois que a mamãe determina o encerramento da comezaina?
Viram só? Os papais fazem muito mais do que roncar. Fica aqui, portanto, o registro do meu protesto.
Mas, pensando bem, não posso me queixar. Serei privilegiado pela presença das crianças junto a mim neste domingo, diferente de muitos pais de filhos já adultos que, por força da pandemia, não poderão revê-los tão cedo. A estes rendo, além de minhas homenagens, meu desejo de que tenham força e paciência neste momento tão complicado. Vai passar.
E, assim sendo, se vierem com a canção O ronco do papai, tudo bem. Afinal, sou o papai do coração!
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