Categories: Regional

O que um famoso botânico francês viu na região há 170 anos

Os botânicos Alexander von Humboldt (1769-1859), alemão, e Aimé Bonpland (1773-1858), francês, estão entre os personagens mais relevantes do século 19. O primeiro fixou de tal forma seu nome na pesquisa em botânica que, de certo modo, inaugurou essa ciência da forma como a conhecemos.

Juntos, Humboldt e Bonpland, desde o momento em que se conheceram, ainda jovens, em Paris, atravessaram a América do Sul de norte a sul, cruzaram o México e perambularam pela África e pela Ásia, além da Europa. Quem diria então que, dentre tantas andanças, Bonpland, o fiel escudeiro de Humboldt, teria visitado também Santa Cruz do Sul?

Pois isso aconteceu. Ocorreu quando o nome da área, de todo erma, era apenas Santa Cruz. E antes mesmo que as primeiras famílias de imigrantes chegassem a essa região, nos primórdios da colônia alemã oficial, em 19 de dezembro de 1849.

Publicidade

Agora, em 2019, quando transcorrem os 170 anos da colonização alemã, registros em diário deixados por Bonpland permitem conhecer os aspectos locais antes da chegada dos imigrantes. Tudo porque Bonpland, na época, entre viagens à Europa e pela América do Sul, havia se fixado entre São Borja e a província argentina de Misiones.

Ao final da década de 1840, doente, decidiu ir a Porto Alegre a fim de consultar médico, ainda que ele próprio exercesse essa especialidade. A viagem a partir de São Borja, via Rio Pardo, foi registrada em diário, posteriormente conservado em museu em Paris. Em São Borja, Bonpland administrava criação de cavalos e ovelhas.

Ao chegar a Rio Pardo, em março de 1849, cerca de nove meses antes da chegada das primeiras famílias alemãs a Santa Cruz, recebeu convite para conhecer a região ao sopé da Serra Geral, diferenciada em termos botânicos. Deslocou-se assim para a área, a atual Santa Cruz, e ficou hospedado na casa, simples, de um inglês chamado Wilhelm Lewis, ou Guilherme Luís, como foi aportuguesado.

Publicidade

Por seu diário, é possível constatar que a primeira impressão de Bonpland da região não fora positiva: local ermo, teve impacto forte da vegetação, das terras quebradas e da dificuldade de deslocamento em virtude dos cursos d’água, em direção à Serra. E menciona a presença indígena, os Bougres.

Quem igualmente faz menção à visita de Bonpland, que durou de 6 de março a 30 de abril, é o médico e viajante alemão Robert Avé-Lallemant (1812-1884), que viajou à já instalada colônia de Santa Cruz em março de 1858, quando esta tinha quase nove anos de existência e, portanto, também nove anos após a passagem de Bonpland.

Na viagem a cavalo a partir de Rio Pardo, Avé-Lallemant tem a companhia justamente do inglês Wilhelm Lewis, em casa do qual também fica hospedado. E Avé-Lallemant, na continuação do roteiro pelo Rio Grande do Sul, semanas mais tarde empenha-se em visitar Aimé em sua fazenda, o que de fato faz. Encontra o velho Bonpland, nove anos depois da viagem a Santa Cruz, aos 85 anos, esgotado após décadas de exaustivas viagens pelo mundo.

Publicidade

Quando se despedem, Avé-Lallemant fica com a impressão da debilidade do grande botânico, nascido em La Rochelle. Efetivamente, poucos dias após a sua visita a Aimé, ainda na viagem pelo Rio Grande do Sul, Avé-Lallemant recebe a notícia de que Bonpland falecera, em 10 de maio de 1858. Despedira-se da vida um dos ícones da botânica e da cultura em todos os tempos que, ao lado de tantas paisagens, viera ver Santa Cruz bem de perto.

PARA SABER MAIS

Como seria de esperar, pela proeminência internacional dos personagens envolvidos, dois dos botânicos mais importantes de todos os tempos, Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland, há uma vasta bibliografia acerca de suas pesquisas, de sua vida e de sua obra. E mesmo sobre as viagens de ambos pela América do Sul, bem como sobre a presença de Bonpland em território gaúcho, há bastante a conferir.

Publicidade

A primeira obra referencial sem dúvida é o próprio Diário da viagem de São Borja à Serra e a Porto Alegre, de Bonpland, que pode ser consultado no original em francês, editado em Porto Alegre pela Ufrgs, em 1978 – base dos trechos traduzidos ao lado.

 

Já no plano ficcional, o romance Figura na sombra, do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, lançado pela L&PM em 2012, resgata justamente a presença do botânico e viajante Aimé Bonpland no Sul do País e na área de fronteira com a Argentina. Humboldt e Bonpland são igualmente iluminados por estudos clássicos, como o abrangente A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt, da historiadora indiana-britânica Andrea Wulf, lançado em 2015 sob o selo da Crítica; e O Cosmos de Humboltdt: Alexander von Humboldt e a viagem à América Latina que mudou a forma como vemos o mundo, do escritor e pesquisador Gerard Helferich, lançado pela Objetiva em 2005.

Publicidade

“Depois de termos atravessado um desses campos, terra realmente característica, numa extensão de umas duas milhas, reapareceu maior variedade de seres vivos e de aspectos das serras próximas com as suas matas. Sobre uma coxilha, a casa de campo desabitada e por isso decadente do meu companheiro inglês William Lewis, situada no meio de um belo distrito campestre. Acima das ervas daninhas, crescem magníficas laranjeiras e figueiras e, ao lado destas, ameixeiras e macieiras. Já muitos estrangeiros se hospedaram nesta casa; tornou-se, porém, famosa porque aqui esteve várias vezes o velho Bonpland, estudando a botânica desta região.

Pouco depois passamos por um regato e, afinal, chegamos a uma grande e larga clareira limitando com um terreno montanhoso e coberto de mato. Começa aqui a colônia alemã de Santa Cruz.”  Robert Avé-Lallemant, Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858, p. 171.)

“O clima de Santa Cruz é bem diferente”

O Magazine apresenta com exclusividade, pela primeira vez em português, trechos do Diário com as impressões da temporada que o francês Aimé Bonpland passou em Santa Cruz, entre 6 de março e 30 de abril de 1849. A tradução foi feita pela jornalista Simoni Gollmann a partir do original em francês com os registros integrais da viagem de Bonpland de São Borja a Porto Alegre, com a parada em Rio Pardo e a visita a Santa Cruz. A edição do relato foi viabilizada pelo Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em 1978, no livro Journal – Voyage de Sn. Borja a la Cierra y a Porto Alegre / Diário – Viagem de São Borja à Serra e a Porto Alegre, com 188 páginas, no formato de 21 x 30 cm. A transcrição do manuscrito original de Bonpland (conservado na Biblioteca do Museu de Paris), com notas e revisão, coube à professora Alicia Lourteig.

Trechos do Diário de Aimé Bonpland
Tradução do francês de Simoni Gollmann

Na página 18 – 6 março
Esta rota direta se faz em meio a belos vales cercados de florestas de pinheiros. Ela oferece um único obstáculo para a passagem dos carros. É um valo do qual as bordas são cobertas de rochedos e o declive é acentuado. Para facilitar a passagem dos carros seria necessário ver se podemos contornar esta montanha. (…) Por volta das 5 horas da tarde chegaram minha charrete, meu pessoal, minhas ovelhas, meus jumentos e meus cavalos, felizmente. Eu parti dia 11 de fevereiro. Estou chegando 6 de março. Quer dizer que levei 25 dias para vir de São Borja até aqui (Santa Cruz). Como houve dias em que caminhei muito pouco e outros em que não caminhei nada, uma charrete pode facilmente vir de São Borja até aqui em 20 dias e uma tropa de gado ou de outros animais pode vir em 15 dias.

Na página 19 – 10 março
Eu me ocupei todo o dia em pegar, descrever e preparar minhas plantas. As ameaças de mau tempo continuam. Não chove em Santa Cruz, mas tudo indica que choveu a Oeste e Sul.

Na página 26 – 23 março
O clima de Santa Cruz é bem diferente do de São Borja e de todas as Missões, tanto as localizadas no Uruguai quanto as das costas do Paraná. É importante estudar bem essa diferença a fim de dirigir estes trabalhos de uma maneira correta.

Na página 29 – 9 abril
Fiz hoje um passeio a dois lugares de Santa Cruz no qual o objetivo principal foi ver um cemitério dos antigos habitantes destes lugares (índios ditos Bougres diferentes e inimigos mortais dos Bicudos). Há aproximadamente 30 anos que a Serra e todas as terras compreendidas entre esta Serra até a costa oriental do Jacuí Grande em um grande escopo de terra e sobretudo até Rio Pardo se encontravam ocupadas pelos índios chamados Bougres. Estes nativos eram muito cruéis, devastadores e causavam, de tempos em tempos, doenças e perdas aos brasileiros. A cidade de Rio Pardo sofria seguidamente com os Bougres e é desta mesma cidade que saíram os meios de afastar para sempre os Bougres destes lugares, que eles possuíam desde sempre.”

Naiara Silveira

Jornalista formada pela Universidade de Santa Cruz do Sul em 2019, atuo no Portal Gaz desde 2016, tendo passado pelos cargos de estagiária, repórter e, mais recentemente, editora multimídia. Pós-graduada em Produção de Conteúdo e Análise de Mídias Digitais, tenho afinidade com criação de conteúdo para redes sociais, planejamento digital e copywriting. Além disso, tive a oportunidade de desenvolver habilidades nas mais diversas áreas ao longo da carreira, como produção de textos variados, locução, apresentação em vídeo (ao vivo e gravado), edição de imagens e vídeos, produção (bastidores), entre outras.

Share
Published by
Naiara Silveira

This website uses cookies.