Na calçada da rua Irmão Emílio, um piano passaria despercebido não fossem as telas de pinturas que destoavam das coisas restadas. Ao primeiro olhar as imagens dos quadros chamavam atenção. Todavia, logo a seguir, o teclado traduzia a inquietude dolorida de um bairro, da cidade, de uma região, do Estado. Em frente de cada casa, muito ou quase tudo de todas as moradias. Na verdade, não eram “coisas” que aguardavam o caminhão para serem transportadas. Não eram apenas equipamentos, máquinas, estruturas, veículos, alimentos e utensílios, colchões, camas, mesas, cadeiras, sofás, roupas, eletrodomésticos… Amontoados estavam ali esforços, conquistas e agora perdas. Também a criatividade, que transformara peças em adorno, arte, sonoridade e beleza, transmutadas em bem-estar, ali tombara inerte.
Na mesma rua, um pouco adiante, um casal, de olhos avermelhados, retorna para sua casa, de onde fora desabrigado pelas águas. Perguntados pela filha, a resposta ecoa profundidades: “Ela não quer voltar para cá. Está com muito medo”.
Todavia, o tímido sol, depois de dias duramente lançados sobre a vida de cada um, ilumina esperanças. Uma semana se passou, ainda que a tragédia esteja longe de ser esquecida. Melhor, nunca deixará de ser lembrada. Lembrada como a solidariedade dos que socorrem, dos que trazem marmitas, dos que ajudam a limpar as casas e pátios, dos que orientam, dos que protegem, dos que acolhem, dos que selecionam as doações, dos que deixam seu conforto, dos que recolhem os animais desesperados, dos que informam, dos que saem “de seu quadrado”, de todos que, a seu modo, dedicam tempo e empenho para quem mais precisa. Lembrados no anonimato, pois como disse a prefeita Helena: “Ninguém quer aparecer, apenas ajudar”. Anonimato ainda mais valioso, porque feito doação genuína.
Publicidade
À atenção solidária e ao esforço reconstrutivo oportuniza-se a pergunta: e agora, como será daqui para a frente? Antes de respostas apressadas, cabe consultar a própria natureza. Ouvir o que ela tem a nos dizer, tentar compreender que ao escutá-la estaremos nos ouvindo. Podemos elaborar teses, encontrar palavras e elaborar dissertações nutridas por raciocínios lógicos…mas se não entendermos o que a terra, as águas, os ares, as planícies, encostas, serranias e as criaturas de todos os habitats estejam a nos dizer, lamentaremos as próximas catástrofes. Quem sabe nos demos a oportunidade de pensar e fazer diferente. Não urbanizar como costumamos, não usar energia que polui, não consumir por consumir… Tantos “nãos” que podem ser transformados em “sins” de uma nova modelagem. A natureza, apesar de tudo, ainda segue esperançosa. Sonha com humanos menos antinaturais, menos encastelados em “seu quadrado”.
O piano já não está na calçada. A menina voltou para casa. Talvez ela encontre no som de um outro piano a possibilidade da sinfonia que não se perdeu, apenas aguarda que saibamos ouvi-la e compreendê-la. O som é natural, como o abraço da mãe em seu dia, feito presença em todos os dias.
LUTZENBERGER
Publicidade
Naquele mês de maio, no dia 14 de 2002, faleceu José Lutzenberger. Aos 44 anos de idade, tomou uma decisão transformadora: deixou um emprego rendoso para se transformar no ícone que segue nos desafiando e inspirando. O que ele nos diria nos calamitosos dias de hoje?
LEIA MAIS COLUNAS DE JOSÉ ALBERTO WENZEL
Chegou a newsletter do Gaz! 🤩 Tudo que você precisa saber direto no seu e-mail. Conteúdo exclusivo e confiável sobre Santa Cruz e região. É gratuito. Inscreva-se agora no link » cutt.ly/newsletter-do-Gaz 💙
Publicidade
This website uses cookies.