Regional

O olhar de Hörmeyer sobre o mundo colonial

O Rio Grande do Sul (e o Brasil) em grande medida deve a um alemão, Joseph Hörmeyer, relativamente desconhecido do grande público, o êxito de sua política de ocupação de territórios quase desabitados até meados do século 19. No afã de atrair imigrantes dispostos a iniciar uma nova vida e se fixar em áreas afastadas em todo o Sul do País, o governo brasileiro promoveu campanhas de convencimento tanto na Alemanha quanto em outras regiões da Europa.

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E quando vozes se ergueram questionando até que ponto a população migrante estava sendo bem atendida no novo habitat, Hörmeyer, que estivera no Sul do Brasil e retornara a sua pátria, deu contribuição importante no sentido de incentivar ou de estimular interessados em se mudar para o “novo mundo”. O fez com a publicação de vários livros, nos quais descreve as terras distantes. E um detalhe: ele fora colono pioneiro em uma picada da Colônia de Santa Cruz, no início da ocupação desta região.

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Testemunha dos primórdios da colônia de Santa Cruz

O núcleo urbano de Santa Cruz sequer estava demarcado quando, em abril de 1854, um livro chegou a público em Koblenz, ou Coblença, cidade do estado da Renânia-Palatinado, na confluência dos rios Mosela e Reno, no noroeste do território atual da Alemanha. Beschreibung der Provinz Rio Grande do Sul in Südbrasilien mit Besonderer Ruecksicht auf deren Kolonisation era o título da obra, assinada por Joseph Hörmeyer. No volume, como anunciava o editor, Michael Kröff, descrevia-se, quase que em primeira mão, paisagens e circunstâncias das áreas de colonização alemã no distante Sul do Brasil. Entre elas, a então recém-fundada Colônia de Santa Cruz.

Essa mesma obra precisou aguardar por mais de 130 anos para que finalmente se tornasse conhecida nas regiões que o autor descrevia. Uma edição só foi viabilizada em 1986, sob o título de O Rio Grande do Sul de 1850: descrição da Província do Rio Grande do Sul no Brasil Meridional, numa parceria entre a D.C. Luz-zatto Editores e a Associação das Editoras Universitárias da Região Sul (Eduni-Sul), em Porto Alegre.

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O conteúdo, que resultou em 128 páginas, foi traduzido por Heinrich A. W. Bunse. É, seguramente, um dos primeiros documentos fidedignos de maior extensão alguma vez publicados por um imigrante que se fixara na área da Colônia Santa Cruz.

E isso que poucas informações existem sobre a vida de Hörmeyer. O jornalista e historiador gaúcho Carlos Reverbel (1912-1997) é quem traz contribuições em uma apresentação a essa obra. Bunse, o tradutor, mencionou que o também escritor e pesquisador gaúcho Abeillard Barreto (1908-1983) levantara alguns poucos dados sobre Höermeyer para a sua referencial Bibliografia Sul-riograndense, inseridos no volume 1 desta obra, lançada pelo Conselho Federal de Cultura, no Rio de Janeiro, em 1973.

Ali, Barreto detalha que Hörmeyer nasceu a 28 de fevereiro de 1824, justamente o ano de início da colonização alemã no Rio Grande do Sul, com a chegada das primeiras famílias à atual São Leopoldo, à margem do Rio dos Sinos, cerca de cinco meses após a data em que Joseph veio ao mundo. Ao final deste mês, portanto, comemora-se igualmente a passagem dos 200 anos desde o nascimento de Hörmeyer. Que ocorreu na localidade de St. Polten, na Baixa Áustria. Nada se sabe sobre sua formação inicial, mas em 29 de março de 1851 acabou contratado, em Hamburgo, como capitão de infantaria pelo Império Brasileiro, a princípio pelo prazo de oito anos. E, assim, transferiu-se para o Sul da América.

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Hörmeyer foi, portanto, um membro dos Brummers, o grupo de soldados alemães contratados como mercenários para lutar na Guerra contra Rosas. Entre eles estiveram ainda nomes como os de Carlos von Koseritz, que posteriormente tornou-se um importante jornalista, além de político; Hermann Rudolf Wendroth, um exímio desenhista; e Carlos Jansen, outro escritor e jornalista. Depois de um tempo em sua função, Hörmeyer se desmobilizou.

Como o contrato lhe facultava, optou por se fixar em área de terras na colônia, e em 1852 estava na recém-criada Colônia de Santa Cruz. A partir dela, posteriormente se fixou em outras regiões, como descreveu em relato que finalizou em outubro de 1853, em Porto Alegre, e que resultou no livro publicado em 1854 em Koblenz. Consta que Joseph faleceu em Viena, na Áustria, em 1973, duas décadas após ter concluído essa sua obra.

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Um incentivo para que outros alemães emigrassem

Adescrição que o alemão Joseph Hörmeyer faz em seu livro, publicado no Brasil sob o título de O Rio Grande do Sul de 1850, e elaborado no calor da hora da implantação da Colônia de Santa Cruz, constituiu uma espécie eficiente de propaganda a estimular conterrâneos, na Europa da época, a se decidirem por seguir rumo ao distante Sul do Brasil. Na obra, oferece inúmeros detalhes sobre a geografia, o clima, a vegetação, os tipos de alimentos e os hábitos e costumes da população já instalada nessa região.

No mesmo livro, outra perspectiva apresenta uma casa de colono já com sua estrutura mais ampliada, mas ainda assim cercada de muita mata nativa | Foto: Divulgação

Nos anos seguintes, ampliou os seus escritos, com várias novas obras, nas quais revela um estilo peculiar e um dom inegável para criar boas histórias. Por conta desses novos textos, chegou a ser acusado de ter variado ou alterado sua descrição sobre o Sul do Brasil, e de assim estar causando desinformação. A esse argumento uniram-se algumas fontes segundo as quais os governos brasileiro e o da Província do Rio Grande do Sul estariam descumprindo o que estava no contrato, de maneira que a vida para os colonos alemães se tornava difícil. Entre os que saíram em defesa de Joseph esteve, por exemplo, o médico e viajante Robert Avé-Lallemant.

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Hörmeyer negou com ênfase que tivesse mudado de posição sobre as possibilidades que oferecia o Brasil. Entre novos títulos, lançou em Leipzig, em 1863, o instigante livro Was Georg seinen Deutschen Landsleuten über Brasilien zu erzaehlen weiss. Essa obra foi publicada no Brasil em 1966 pela editora Presença, do Rio de Janeiro, sob o título O que Jorge Conta sobre o Brasil, em tradução do general Bertholdo Klinger, com uma apresentação sobre a vida e a obra do autor feita justamente por Abeillard Barreto.

Nesse caso, Hörmeyer cria o personagem Jorge, que, tendo emigrado para o Sul do Brasil, alguns anos depois retorna a sua terra natal, “numa aldeia do planalto de Bade”. Ali, é recepcionado por um grupo de conterrâneos que lhe inquire sobre as razões pelas quais voltara, visivelmente em melhores condições de vida do que quando partira, o que reparam por sua vestimenta e por sua aparência. Ele então comenta que vinha do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, e ali se fixara em uma área de terras que recebera do governo daquela província. Fora tão bem-sucedido que voltava à Alemanha para buscar os seus demais familiares, como inclusive se comprometera com eles.

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Os moradores daquela aldeia solicitam, portanto, que ele dê mais explicações sobre como é a terra e como são as condições de vida no Sul do Brasil. Jorge (obviamente um personagem que funciona, literariamente, como alter-ego do próprio Joseph) se compromete a, nas noites seguintes, numa taverna, descrever essa nova região, de maneira a deixar cada pessoa em melhores condições de decidir se também gostaria de emigrar.

O livro se estrutura em sucessivos capítulos, um para o relato de cada noite, num total de 14. E é na 10a noite de seu enredo que detalha a sua viagem e a chegada e fixação em Santa Cruz, no caso, na Picada Dona Josefa. Uma vez que a descrição é viva e detalhada, deixa transparecer a atmosfera que envolveu todo o deslocamento a partir de Porto Alegre (também visitara São Leopoldo), pelo Rio Jacuí, a chegada a Rio Pardo e, de lá, até a sua área de terras. É praticamente um registro (emocionante) no calor da hora da instalação das primeiras famílias na atual Santa Cruz do Sul.

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Descrição detalhada da rotina em área de terra nos primórdios

Por meio do livro O que Jorge conta sobre o Brasil, de Joseph Hörmeyer, é como se o leitor se visse transportado para o ambiente da ocupação do interior da Colônia de Santa Cruz, tendo como guia um dos alemães que chegou para se fixar nessa nova terra. Com riqueza de detalhes e sendo convincente pelos apontamentos que agrega, ainda que sugerindo tratar-se de um texto ficcional, por adotar um personagem-narrador (Jorge), Hörmeyer certamente causou impacto entre seus conterrâneos no momento em que o livro foi publicado, na década de 1860.

No capítulo em que narra a chegada ao novo “lar”, com a família, em percurso a partir de Rio Pardo, menciona as passagens por Rincão D’El-Rei, onde outra colônia se iniciava, sendo que “homens de São Leopoldo haviam comprado terra, lá se estabelecendo”, e depois pela aldeia de São Nicolau e pela casa de Dona Carlota. Esta, como se sabe, era a esposa do norte-americano Wilhelm Lewis, proprietário de terreno junto à praça central daquele que viria a ser o núcleo urbano da colônia. Lewis também entra para a história por ter sido o primeiro a construir casa na vila, na esquina das atuais ruas Marechal Floriano e Ramiro Barcelos, onde se situa o Banco Santander.

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Na continuidade da viagem, Hörmeyer escreve: “Partimos de tarde e em pouco tempo começamos a aproximar-nos das serras, debruadas de matas até ao sopé. Pernoitamos em Faxinal, uma praça bastante grande, aberta e plana, que, por causa de sua cômoda situação à saída das picadas e por causa das vantagens locais de possuir riachos e muita madeira, parece apropriada para servir de praça de uma cidade”. Vemos, em seu relato, descortinar-se a atual Praça Getúlio Vargas.

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Mas Hörmeyer segue adiante: “O lugar projetado para a cidade, já hoje, em parte edificado, chama-se São João, mas na boca dos colonos, ainda por muito tempo, será chamado Faxinal, embora ali não haja mais faxinal”. E complementa: “Tendo chegado antes, esperava-nos em Faxinal o diretor senhor Buff, um homem velho, que antes servira como oficial nas tropas alemãs que vieram para o Brasil em 1834.”

Hörmeyer apresenta ao leitor (tanto o que teve contato com seu livro em primeira mão, em território germânico, em 1863, quanto aquele que o lê em pleno século 21) o diretor Martin Buff, que chefiava a Colônia. “Não conversou muito conosco. Mandou que carregássemos a bagagem em burros e partíssemos para a picada Dona Josefa”. Ele terá, então, contato com o interior e, ao longo das páginas seguintes, descreverá em vivos detalhes tudo o que viu e viveu em seu novo lar.

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Heloísa Corrêa

Heloisa Corrêa nasceu em 9 de junho de 1993, em Candelária, no Rio Grande do Sul. Tem formação técnica em magistério e graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Trabalha em redações jornalísticas desde 2013, passando por cargos como estagiária, repórter e coordenadora de redação. Entre 2018 e 2019, teve experiência com Marketing de Conteúdo. Desde 2021, trabalha na Gazeta Grupo de Comunicações, com foco no Portal Gaz. Nessa unidade, desde fevereiro de 2023, atua como editora-executiva.

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