As lembranças que guardo de viradas de ano são de momentos que iniciavam em êxtase e terminavam em frustração. Sempre gostei dos rituais de réveillon – a contagem regressiva, os fogos no céu, os abraços e tudo o mais geravam em mim uma expectativa sem tamanho pelo que estava por vir. Tão logo amanhecia, a excitação dava lugar a uma profunda decepção ao perceber que tudo permanecia rigorosamente no mesmo lugar. Aos poucos, fui compreendendo a obviedade de que a marcação do tempo é uma ficção socialmente convencionada e que só o que pode mudar em um 1º de janeiro é a nossa disposição para fazer algo diferente.
Esta semana, revivi esse golpe de realidade. Em algum momento da ceia, desejei em silêncio um milagre: que 2020 levasse consigo a tragédia na qual nos mergulhou e que despertássemos na sexta-feira sem pandemia, sem distanciamento, com UTIs vazias e maçanetas livres de perigo mortal. Afinal, de que adianta praguejar contra 2020, desonrá-lo com títulos do tipo “o pior ano da história”, se a contagem dos anos é uma fantasia, a vida corre em um fluxo contínuo e não há nada, estritamente nada, que nos garanta que 2021 começará ou acabará melhor? Prefiro o alívio fugaz da esperança ilusória em um novo ciclo.
2020 foi um ano de inversões: ficar em casa virou um ato político dos mais revolucionários, esconder o rosto se transformou em obediência civil e honestidade intelectual, não encostar no outro tornou-se expressão de afeto e de respeito à vida em sociedade e a ignorância institucionalizada mostrou que é, sim, capaz de prevalecer sobre o conhecimento e o bom senso, se não estivermos atentos. Também foi um ano de ingratidões: para ficar em dois exemplos, com os profissionais da linha de frente da saúde, pouquíssimo lembrados nas intermináveis discussões sobre abertura ou não da economia, embora diretamente afetados, e com os artistas, a quem recorremos incessantemente para amenizar o isolamento e que quase nada receberam de apoio para enfrentar a crise.
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Até podemos tentar ressignificar 2020, atribuindo-lhe algum valor positivo. Pode-se pensar que a distância nos permitiu valorizar as relações que realmente importam, que a saudade estimulou as manifestações de carinho as quais deixamos de lado na rotina normal e que a adversidade gerou situações notáveis de superação e criatividade. Impossível é ignorar que isso já custou mais de 1,7 milhão de vidas no mundo – vítimas do infortúnio ou do descaso, a depender do ângulo que se olhe – e que outras tantas ainda serão perdidas até que encontremos a saída desse furacão.
O milagre de réveillon, enfim, não aconteceu. O “novo” ano chegou e as nossas angústias, dúvidas e contradições seguem as mesmas. 2021 é um horizonte de incertezas. Como, aliás, sempre foram todos os anos. A diferença é que até pouco tempo acreditávamos piamente que o controle de tudo, inclusive do futuro, estava em nossas mãos. O que nos resta? Seguir tentando acrescentar humanidade a todas as nossas atitudes e decisões. E esperar por um amanhecer qualquer que anuncie, de fato, dias melhores. Seja quando for.
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