Cultura e Lazer

O livro desconhecido de Diamantina

Que destino tiveram os escritos de Diamantina Alves Soares? Em 1961, essa santa-cruzense foi destaque de uma matéria especial publicada pela Revista do Globo, periódico quinzenal editado pela Livraria do Globo, em Porto Alegre. Em três páginas com fotos, o texto a chamava de “a Carolina gaúcha”. Era uma referência a Carolina Maria de Jesus, autora do hoje clássico Quarto de despejo, lançado em 1960 com grande repercussão. Esse livro autobiográfico retrata as experiências da escritora como moradora de uma favela, mãe e catadora de papel em São Paulo, na linguagem simples, mas expressiva de alguém sem formação escolar, mas com aguda capacidade de observar o mundo e registrar impressões.

Talvez como efeito do sucesso de Carolina à época, Diamantina foi “descoberta” pela Revista do Globo. À maneira da autora de Quarto de despejo, ela também era uma mulher negra, em situação de vulnerabilidade, com gosto pela leitura e dedicada a escrever memórias. Uma história, segundo ela, de muitas dificuldades.

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No casebre de quatro metros quadrados onde residia sozinha, em Alvorada – mesmo município onde seria sepultada em 1982 –, ela recebeu o repórter A. Edison Salazar de Souza e o fotógrafo João Vieira. “A casa está situada nos fundos de um terreno. Com apenas uma peça, não oferece o mínimo de conforto. Os móveis são os estritamente indispensáveis. É viúva há 15 anos e vive somente da pensão deixada pelo marido. Conhece várias famílias tradicionais de Porto Alegre, pois de quase todas foi empregada em tempos passados. Passa a maior parte do tempo a caminhar de uma casa para outra solicitando favores, pois está doente e não consegue trabalhar”, descreve o jornalista. Ela era, então, uma senhora de 66 anos, “de cor preta, cabelos grisalhos e olhar muito vivo”.

Diamantina Soares conta que nasceu em Vila Teresa, então pertencente a Santa Cruz (hoje faz parte de Vera Cruz). O pai chamava-se Timóleo Xavier Sarmento Menna, natural de Rio Pardo e membro da tradicional família Menna Barreto. Nas palavras dela, “um homem culto, mas muito temperamental”. Foi escrivão da Prefeitura de Santa Cruz e teria participado da Guerra dos Farrapos. O avô paterno foi o advogado, militar e poeta Sebastião Xavier Sarmento Mena (1809-1893). A mãe de Diamantina era negra, filha de um escravo de Protásio Alves. O nome era Maria Clemência Alves.

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Não se sabe em que momento Diamantina deixou Santa Cruz para se fixar na Região Metropolitana. A narrativa do livro de memórias, que ela começara a escrever em 1951, inicia-se em 1886. Além de rememorar episódios da vida, resgata acontecimentos políticos da época, “com uma narrativa vigorosíssima” e “capaz de impressionar vivamente a quem porventura ler”.

Na peça que serve de sala, quarto e cozinha, ela escreve sobre uma velha máquina de costura. Usa qualquer papel, principalmente de embrulho, para depois passar a limpo em cadernos escolares. “A gente se vê tão desamparada na vida, doente e sem trabalho, que, por intermédio do meu livro, quero lançar uma mensagem de humanidade, para mostrar aos outros a vida real e miserável que bate em tantas portas sem achar um mínimo de solução”, diz ao repórter.

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Diamantina Soares sobrevivia com a pensão do ex-marido e de favores de terceiros. Segundo a reportagem, não conseguia trabalhar por razão de doença (não especificada). Sabe-se que ela faleceu em fevereiro de 1982, de câncer, no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Tinha 87 anos de idade. Foi sepultada em Alvorada, onde residia. Não deixou bens, testamento, nem filhos. Quanto ao livro a que dedicava horas, nada mais se soube.

Uma história que desperta curiosidade

Ela não teve filhos e faleceu em 1982, aos 87 anos | Foto: Divulgação

A história de Diamantina Alves Soares chegou ao conhecimento da Gazeta do Sul por intermédio do escritor e professor gaúcho Luís Augusto Fischer. Ele fez contato após ter recebido um e-mail do pesquisador Jandiro Koch, residente em Estrela, com a reportagem da Revista do Globo.

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Mas o que aconteceu com o livro que havia atraído tanta atenção? Teria sido editado, ou mesmo concluído? Interessado pelo assunto, Koch buscou conhecer mais a respeito de Diamantina, mas não tem informação de qualquer publicação da obra. Como ela não deixou descendentes e, provavelmente, não há familiares vivos, torna-se difícil saber o que houve. “É improvável que, pelo sucesso de Carolina Maria de Jesus na época, ninguém tenha se interessado pelos cadernos. Mas, de momento, não há nenhuma notícia de publicação ou tentativa”, afirma. “O que não significa que não possa ter havido algo em alguma revista, em jornal ou até mesmo em algum livro esquecido no tempo.” Por enquanto, fica apenas o registro feito pela imprensa.

Seria realmente um texto de valor? O autor da reportagem não deixa dúvidas sobre a avaliação pessoal. “Depois do recente fenômeno Carolina de Jesus, o aparecimento de algo parecido poderia imediatamente tornar-se suspeito. A Revista do Globo, entretanto, não pensa assim”, escreve A. Edison Salazar na abertura. E ressalta o fato de que Diamantina Soares iniciara o livro uma década antes, ou seja, “muito antes de se falar em Carolina”.

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O fato é que Diamantina, essa senhora “meiga e cansada”, procurou contar a própria história, simples e humana. E que teve início no século 19, em Vila Teresa.

“As Carolinas”

Foto: Divulgação

A obra de Carolina Maria de Jesus, a quem Diamantina foi comparada, é tema de pesquisas e atrai um número crescente de leitores. Negra, catadora de papel e moradora de uma favela paulista, nasceu em 14 de março de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, filha de pais analfabetos. Apesar disso, frequentou a escola, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu o gosto pela leitura.

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Em 1937, após a morte da mãe, mudou-se para São Paulo. Aos 33 anos, desempregada e grávida, passou a viver na favela do Canindé, zona norte da capital paulista. Trabalhava como catadora e, nas horas vagas, registrava o cotidiano em cadernos que encontrava no próprio material que recolhia. Um desses diários deu origem ao primeiro livro, Quarto de despejo – Diário de uma favelada, publicado em 1960. A obra virou best-seller, foi vendida em 40 países e traduzida para 16 idiomas.

Após a publicação e o sucesso do primeiro livro, a autora publicou outras obras, como Pedaços de fome e Provérbios. Carolina nunca se casou e teve três filhos. Morreu em fevereiro de 1977, aos 62 anos, de insuficiência respiratória.

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Segundo a matéria da Revista do Globo, Diamantina Soares eventualmente comprava livros. Tinha no casebre um pequeno acervo de 20 volumes, e um deles era justamente Quarto de despejo. “Li o livro de Carolina e achei-o interessante. Assim que soube que estava à venda, me apressei em comprá-lo, pois eu já estava escrevendo o meu livro e despertou-me muita curiosidade. Pois é, as Carolinas estão por aí e estão aparecendo, eu comecei antes delas, mas a verdade é que elas se sucedem”, comentou.

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