Contam que não dei sossego em casa enquanto não aprendi a ler. Pegava um livro e ia conversar com minha mãe, meio que exigindo que ela me ensinasse. Aos 6 anos estava alfabetizada e disposta a descobrir o que afinal havia em tanto papel impresso. Evidentemente, minha curiosidade exigia um limite:
– Este livro não é para a tua idade, Rose. Não quero te ver com ele. Só quando fores adulta.
– Por quê?
– Porque é um livro danado.
Era um exemplar um tanto surrado, folhas amareladas, e na capa, uma mulher com “roupa de dormir” estendida na frente de uma lareira onde as chamas ardiam. No alto, o nome: A carne. Abaixo, o autor: Júlio Ribeiro. Devolvi a obra à prateleira sem nenhuma dúvida de que deveria obedecer. Eu morria de medo da minha mãe – severa e implacável quando contrariada. Melhor deixar A carne pra lá.
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Isso, até chegar aos 13. Ah, os 13. Naquela altura, eu já sabia como eram feitos os bebês. E, sobretudo, sabia o significado da palavra “danado” conforme o dicionário da dona Theresinha – tudo que tivesse a ver com sexo e “pornografia”. Por isso, em um dia qualquer, enquanto os hormônios me devoravam os bons pensamentos, lembrei do Júlio Ribeiro e da mulher na capa. E fui pegar o livro.
Ansiosa pelas partes terríveis, não consegui acompanhar o fluxo da narrativa. Fui saltando as páginas em busca do pecado que eu só conhecia por ouvir falar. Porém, à medida que avançava, a agitação deu lugar ao desânimo. Nada daquela sexualidade fazia sentido para a menina que eu era. No lugar do tesouro profano das minhas fantasias, encontrei somente um relato cru. E, desiludida, abandonei A carne sem de fato lê-la.
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Volto a essa história um tanto ingênua por conta da polêmica, nada ingênua, com O avesso da pele. Obras e seus autores têm provocado reações desde sempre. Às vezes é uma mãe zelosa, às vezes um moralista assustado. Às vezes, movimentos ideológicos e suas fogueiras infames. Ou apenas pessoas que buscam benefícios próprios.
São posturas datadas, inseridas nas práticas de sua época ou sinais do medo que as mudanças trazem. É uma agonia diante do futuro inevitável. Pode haver um grande barulho. Mas a literatura vence.
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