“O jornalismo é cada vez mais importante nos dias atuais.” Essa observação deu a tônica da palestra que o jornalista gaúcho Marcelo Canellas proferiu na última segunda-feira, 28, à noite no auditório do Direito do campus da Unisc. A atividade fez parte das comemorações dos 25 anos do curso de Comunicação Social da instituição, que transcorrem em 2019, e proporcionou reflexão sobre os desafios do jornalismo em tempos de crise. O coordenador do curso, professor Leonel Aires, mediou a explanação.
Diante da proliferação de notícias falsas, as recorrentes fake news, e da tentativa de esvaziamento da atuação da imprensa por parte de instâncias de poder, mais crescem e mais se impõem, conforme ele, a responsabilidade e o compromisso dos jornalistas e de seus veículos. São, então, porta-vozes das angústias da sociedade, em especial dos menos favorecidos.
Aos 54 anos, natural de Passo Fundo e formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Canellas atua junto à TV Globo há três décadas. Radicado em Brasília, é um dos principais jornalistas investigativos da emissora, e integra a equipe do Núcleo de Reportagens Especiais do programa Fantástico.
Publicidade
É reconhecido por um jornalismo atento aos aspectos sociais. Recentemente, por ocasião da polêmica envolvendo queimadas na Amazônia, visitou a região e denunciou a atuação de madeireiras e grileiros, que invadem reservas, destroem a floresta e ameaçam a população local. Em sua avaliação, uma maneira de identificar, como jornalista, os temas ou assuntos que são relevantes para o público é deixar-se tocar em sua própria humanidade.
“O que mais me incomoda como pessoa, como cidadão, é o que transformo em pauta, que pode e deve virar reportagem”, frisou. “O que, dentro dos fatos da vida, merece existência pública? É isso o que deve nos guiar o tempo todo.” Em paralelo, enfatizou a necessidade da humildade intelectual do profissional da comunicação, em um contexto de polarizações, inclusive no âmbito de governos, marcado por prepotências, arrogâncias, deturpação e desvirtuação de informações e dados.
Segundo Canellas, o jornalismo deve exercitar o que chamou de grandeza insubmissa. “Esse meu tempo de atuação me fez ver: o que muda uma realidade é a justiça, a sociedade politicamente organizada. E o jornalista tem o papel de ajudar a jogar luz sobre pontos obscurecidos pela arrogância do poder.” E deve fazer isso mostrando situações em que o discurso falso se desvela. “Temos de humanizar, contar histórias, tocar o coração, para que a força da narrativa cause incômodo, permita tomada de consciência e leve a mudanças positivas e necessárias.”
Publicidade
Canellas refere que a imprensa precisa persistir, resistir em sua missão. “Há 30 venho fazendo matérias sobre fome no País e sobre problemas sociais. E eles seguem presentes. Não vejo outra luz que não seja seguir fazendo o que faço”, salientou. “O remédio é mais jornalismo. E quando a gente se equivoca, é consertar o que fez de errado.”
ENTREVISTA
Marcelo Canellas
Jornalista
Gazeta do Sul – Referiste na palestra o que chamas de grandeza insubmissa da profissão de jornalista. Essa grandeza insubmissa está ameaçada?
Marcelo Canellas – Acho que nesse momento de proliferação de notícias falsas é que o jornalismo profissional tem uma importância ainda maior, que é quase separar o joio do trigo e dar sentido ao caos informativo repleto de notícias falsas. Quando o jornalista profissional se coloca diante do fato objetivo, é a garantia para o leitor de que esse fato vai ser fiel ao acontecimento. Essa oferta gigantesca de informações exige do jornalista quase que uma postura de curadoria mesmo. De dar ordem a esse caos e dar sentido à narrativa do cotidiano para que as pessoas possam entender o que está acontecendo. Essa proliferação de notícias, muitas delas falsas, deixa as pessoas zonzas e desorientadas, e elas próprias passam a ser agentes da multiplicação e da propagação de notícias falsas. O papel do jornalismo profissional é o de, muitas vezes, dizer para as pessoas: “espera aí, o que você está fazendo é espalhar algo que não é verdade. O que acontece está aqui, é isso o que a gente tem para mostrar”.
Publicidade
Como enxergas o cenário de polarização de opiniões e posicionamentos em diversas áreas?
Acho que esse cenário persiste, e acho que há uma interdição do diálogo, pela desqualificação do argumento alheio. Isso é um retrocesso do processo de entendimento civilizatório entre as pessoas. E mais: acho que a chave para você mudar isso é apostar no aprofundamento dos temas, o que o jornalismo, a reportagem, é capaz de fazer. Nunca a reportagem foi tão necessária e importante quanto no momento em que você interdita o contraditório, o debate. Porque o que é a reportagem se não você lidar com as contradições da vida? E mostrar as contradições do fato e estabelecer nexo de causa e consequência. Isso é o que desconstrói o que é falso.
Vês a necessidade de mais humanismo, de tocar o coração do leitor, lidar com as questões humanas?
A razão da existência do jornalismo são as pessoas. A gente lida com os dramas humanos, e me parece absurda a ideia de fazer um jornalismo que não é humanizado, ou seja, que não olha a vida sob a perspectiva dos dramas, das injustiças, das contradições. Você só consegue fazer isso humanizando.
É ali que você toca nos pontos-chave da justiça ou da injustiça?
E, mais do que isso, é humanizando a reportagem que você chama a atenção das pessoas, que você prende a atenção, que você faz com que olhem para aquilo que muitas vezes está obscurecido por uma visão embotada da vida. É o grande papel do jornalismo.
Publicidade
Tens 30 anos de Globo. Quem foram os teus parâmetros, os teus modelos de jornalismo?
Claudio Abramo, Ricardo Kotscho, Joel Silveira, Rubem Braga. E na televisão, Lucas Mendes, Ricardo Pereira, Pedro Bial, Carlos Dornelles, Caco Barcellos. Tive contato com os colegas da Globo, Bial, Dornelles, Barcellos. Claro que se você, jovem de 24 anos, entra na Globo e de repente se depara com figuras que eram ídolos teus, é uma situação incrível.
Que elementos transmitem a esperança no país?
O engenho criativo do povo brasileiro é absolutamente fascinante. Você vai nos lugares mais pobres, mais abandonados pelo poder, e vê a criatividade das pessoas, expressa na sua maneira de agir, de se comunicar, de fazer arte, de fazer música, cultura, e de enfrentar a pobreza de maneira corajosa. Esse patrimônio está aí. Ele só precisa de amparo, só precisa de um estado que olhe para essas pessoas não de maneira paternalista, assistencialista, mas de maneira justa. Quem constrói a riqueza do Brasil é o povo brasileiro, e ele não está recebendo de volta, seja em serviços, seja em oportunidades, seja em emprego. Mas a riqueza do povo está nele mesmo.
No ambiente do jornalismo, a televisão vive alguma inquietação nos dias atuais?
A gente não sabe o que vai acontecer com as plataformas hoje existentes. A televisão tem uma capacidade muito grande de se reinventar, de encontrar novas maneiras de se relacionar com seu público, e é o que a gente vem fazendo. Agora, o que vai acontecer e que tipo de plataforma vai prosperar, a gente não sabe. Há alguns anos diziam que o rádio ia acabar, que a televisão ia acabar; a gente não sabe que plataformas vão ficar. O que tenho é certeza absoluta de que é impossível prescindir do jornalismo. O jornalismo é e continua sendo absolutamente necessário; e vai continuar sendo, até para garantir a democracia.
Publicidade
Nesse caso, o que se espera do jornalista?
Espera-se que o jornalismo seja crítico, profundo, que trate de temas que digam respeito ao interesse público, ao drama das pessoas, da injustiça social, a desigualdade, a concentração de renda. Ou seja, o jornalismo precisa tratar das nossas dores, precisa mostrar quais são as nossas dores, para que essas dores sejam superadas.
This website uses cookies.