A Gazeta do Sul completou nessa sexta-feira 79 anos de atuação. O veículo ingressa, assim, em seu ano 80, o que motiva a estreia de uma seção dedicada a refletir, no contexto dessa data, sobre as peculiaridades do jornalismo e da comunicação social no mundo contemporâneo. E nenhum personagem poderia ser mais apropriado para inaugurar essa série do que uma das principais lideranças da área em realidade de Brasil e de América Latina – além de tudo um santa-cruzense.
O jornalista Marcelo Rech, presidente-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), nasceu em 31 de janeiro de 1962 e, portanto, está com 61 anos, mas em vias de chegar aos 62, na próxima quarta-feira. Como menciona na entrevista que concedeu à Gazeta do Sul, acabou saindo de Santa Cruz ainda criança, pois era filho de pai militar, que se via na contingência de ser transferido com frequência em razão dos compromissos decorrentes de sua área de atuação.
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Formado em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em 1981, Rech fez ainda pós-graduação em Gerenciamento de Centro de Mídia e em Comunicação Digital e Mídia/Multimídia na Northwestern University/ Kellogg School of Management, nos Estados Unidos, em 2001; e em Estratégia de Mídia na Harvard Business School, também nos EUA, em 2009.
Além de passagens por vários e relevantes veículos de comunicação no Estado e no País, Rech atuou no jornal Zero Hora, ao qual ainda está vinculado, e na RBS TV, junto aos quais assumiu cargos de gestão e diretivos. Após temporadas no exterior, voltou a se fixar em Porto Alegre e desde 2016 preside a ANJ, com sede em Brasília, de modo que se desloca com frequência para a capital federal, bem como para outros estados e ao exterior. Desde 2022 é presidente-executivo da entidade, e assim acumula a presidência e funções executivas.
Parcela de suas reportagens especiais, no atendimento a pautas, foi reunida no livro Passageiro da História, lançado pela Sagra Luz-zatto em 1997. Contribuiu ainda em outras publicações. Diz ter planos para um novo livro, no qual pretende refletir sobre a gestão de redações e sobre o jornalismo e a gestão de empresas, em torno das especificidades da comunicação como ramo de negócios. A entrevista foi concedida por e-mail.
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Gazeta do Sul – A Gazeta do Sul completou 79 anos, e ingressa em seu ano 80. Na condição de santa-cruzense, qual foi sua relação com o veículo ao longo do tempo?
Tenho enorme orgulho em ser santa-cruzense. Embora, por ser filho de militar, eu tenha saído ainda criança de Santa Cruz, toda a minha família tem origens na cidade, em Vera Cruz e em Rio Pardo. Para ficar só em um exemplo, os mais antigos vão lembrar da Casa Kraether, que era de meus bisavós por parte de mãe, Leopoldo e Irene Kraether. Minha avó paterna, Célia, era Brito como solteira e casada com Albano Rech. Todos esses sobrenomes estão em nomes de ruas da cidade. Também a Gazeta faz parte da história da minha família. Cresci ouvindo os comentários de pais, tios e avós sobre o que tomavam conhecimento a partir da Gazeta. Mesmo distante da nossa terra natal, a Gazeta sempre foi, e continua a ser, um vínculo importante e insubstituível com nossas raízes.
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Na avaliação do senhor, que papel cumpre um veículo de atuação regional ou o que representa para a comunidade, nos dias atuais?
Como eu disse, essa relação é insubstituível. É assim que eu vejo um jornal com uma trajetória de décadas com uma comunidade. Esse jornal não é só um amontoado de notícias e colunas. Ele é parte da vida daquela comunidade. É ali que a população se vê refletida, que descobre seus potenciais, discute seus problemas e possibilidades. Um jornal local ou regional é parte do desenvolvimento, da vida e alma de uma cidade. Quem mais vai valorizar a cultura local ou amplificar a defesa das reivindicações da região se não os meios regionais?
Como o senhor enxerga a resistência dos jornais regionais, em especial impressos, na realidade brasileira atual?
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Apesar das dificuldades, o jornalismo profissional nunca foi tão relevante e, graças ao digital, mesmo os veículos menores puderam ampliar seu alcance. Antigamente, um assinante da Gazeta, por exemplo, ficava restrito à área de distribuição diária do jornal ou o recebia pelo correio com dias e, dependendo do lugar, até semanas de atraso. Hoje, um jornal local tem assinantes espalhados pelo País e pelo exterior que recebem informação instantânea, independentemente da distância e do fuso horário.
Além disso, os jornais foram o primeiro setor a ser disruptado pela internet. O que ocorre hoje com o varejo e os bancos ocorreu com os jornais há mais de um quarto de século, quando os classificados, que eram uma fonte muito importante de receita, começaram a diminuir e a quase desaparecer. Ou seja, os jornais já passaram pela fase mais crítica e muitos conseguiram se reinventar para esse novo mundo, embora permaneçam enormes desafios de sustentabilidade.
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O que ocorre com o jornalismo de interior no Brasil é um caso específico ou é algo que se testemunha também em outros países?
As dificuldades enfrentadas pelo jornalismo profissional para se sustentar são causadas pelo fato de que algumas poucas plataformas transnacionais drenam mais de 70% das verbas publicitárias digitais mundiais. O desafio é global e preocupa governos e organizações, pelos efeitos assustadores do enfraquecimento do jornalismo. Na Europa e nos EUA, não há semana que passe sem o fechamento de um jornal local com longo histórico de relação com uma comunidade. Conscientes dos danos que esse desaparecimento produz, muitos empresários têm assumido a defesa dos jornais como um fator de desenvolvimento e equilíbrio regionais. O mais conhecido é Warren Buffett, que já adquiriu 28 jornais, em uma aposta no futuro da imprensa escrita. Recentemente, seu braço de investimento, a Berkshire Hathaway, comprou o Tulsa World, fundado em 1905, e preservou mais esse importante vínculo local.
Como o senhor avalia a atuação de veículo impresso (ainda que também com versão digital) e que é transformado apenas em portal de notícias, como tem sido verificado no Brasil? O que muda, nesse caso?
Costumo dizer que esse movimento de transformação de impressos em versões unicamente digitais depende da estratégia de cada empresa. E cada uma vive em um ambiente distinto de outra. Na Alemanha, por exemplo, os impressos seguem com enorme vigor. E são jornais com muitos e densos textos – característica de uma sociedade desenvolvida que gosta de ler. Por outro lado, há muito tempo os jornais deixaram de ser apenas impressos para se transformarem em usinas informativas de 360 graus, atendendo o público da forma mais conveniente conforme a disponibilidade de tempo e a circunstância do usuário. No minuto livre da fila do elevador ou no descanso do sofá no fim da tarde, o jornal está lá para fornecer a informação mais adequada.
O senhor entende que há perda significativa para uma comunidade quando deixa de contar com jornal impresso, e de que perda se trata?
Vou dar um exemplo. Quando o velho Correio do Povo fechou, pelos idos de 1984, minha avó Célia continuou a pagar a assinatura. Eu comentei com ela que o jornal não iria reabrir tão cedo, mas ela redarguiu: “Meu filho, esse jornal deu tanto pra mim que agora é minha vez de retribuir um pouco pra ele”. Essa lição me seguiu o resto da vida como jornalista: estabelecer um vínculo com o leitor tão profundo como esse.
Como o jornalismo local de qualidade não tem substituto e é decisivo na autoestima e desenvolvimento das comunidades, ele precisa mais do que nunca de apoio da sociedade a que ele serve. Seja por meio de assinaturas, anúncios ou difusão da marca, o apoio ao jornal local é fundamental também para se combater as fake news e ajudar a filtrar os delírios e malefícios que contaminam os conteúdos difundidos por redes sociais e grupos de mensagens. Onde não há mais veículos locais, cria-se um vácuo, batizado de deserto de notícias, em boa parte ocupado pela desinformação e até por gângsteres digitais, com enormes ameaças e prejuízos à política, à economia e à vida em harmonia no âmbito local.
Hoje se espera de um veículo de interior praticamente o mesmo dinamismo ou a mesma integração de mídias de um veículo de capital?
Essa estratégia depende das características de cada mercado e de cada veículo. É evidente que nem todo veículo pode ser o The New York Times, e nem haveria sentido nisso. O mais importante para um veículo local é preservar sua relação ética e leal com a comunidade, oferecendo o melhor e mais abrangente serviço jornalístico possível. Nem sempre haverá atualização das notícias 24 horas por dia, sete dias por semana, mas a comunidade precisa ter a segurança de que o que está publicado ali tem o aval da credibilidade de décadas de um veículo. Se algo urgente e de grande dimensão ocorrer, aquele jornal estará do lado da comunidade seja a hora e no formato em que for.
Quais o senhor entende que são os grandes desafios contemporâneos de um jornal de atuação regional, ou de interior? Têm a ver com a própria capacidade de subsistência econômica, ou mesmo com as mudanças na forma de ler ou de consumir conteúdos?
As duas coisas. A grande disputa hoje é pela atenção do usuário, que sempre será limitada por um recurso que não pode ser expandido: o tempo. Nesse sentido, entendo que o jornal impresso leva uma vantagem importante sobre os meios digitais. Quem lê se concentra naquilo, fica focado naquela atividade. Já no digital, fica-se pulando de um lado para outro sem parar. Um site que consegue cinco minutos de atenção contínua pode comemorar. Ou seja, o impresso é um porto seguro de imersão e tranquilidade contra a ansiedade digital, o que inclui uma relação mais estável e menos caótica com a publicidade também. Mas não basta imprimir notícias para se ter atenção. Jornais precisam saber mesclar o importante com o interessante. Ou seja, também precisam, como os bons livros e filmes, prender a atenção do público.
Por fim, que tipo de parceria o senhor entende que os jornais impressos, de interior, e suas comunidades devem firmar? Parceria seria uma palavra importante em favor da subsistência dessa atividade?
Sim, graças a seu vínculo histórico com a comunidade, os jornais mais atentos, como a Gazeta, entenderam que são também plataformas de relacionamento para, por exemplo, promover eventos e produzir conteúdos especiais que sejam relevantes para seu público. É preciso fazer parcerias para ocupar esses espaços e contar com o estímulo e apoios locais. É muito salutar também quando veículos concorrentes se unem em defesa do interesse coletivo. O caso do Comprova, consórcio de mais de 30 veículos brasileiros para enfrentar a desinformação, é um bom exemplo. Graças ao trabalho conjunto entre concorrentes, muitos dos absurdos que corriam durante a pandemia ou períodos eleitorais puderam ser esclarecidos e ter um alcance muito maior do que um veículo isolado. A união sempre fez a força.
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