O pioneirismo de Daniel Munduruku na defesa dos interesses e na divulgação da cultura dos povos indígenas no Brasil é amplamente reconhecido. Ainda na década de 1990, quando estava com pouco mais de 30 anos, encontrou na literatura a via para compartilhar seu olhar de mundo, identificado com a maior floresta tropical do planeta.
Dirigiu-se especialmente aos jovens, apostando na literatura infantojuvenil que, por um lado, promovia a autoestima de seu povo e, por outro, levava esse imaginário a toda a população brasileira. Hoje são mais de 60 títulos, desde Histórias de índio, de 1997. A qualidade de sua obra pode ser medida pela lista de distinções que recebeu, como dois Prêmios Jabuti. E, naturalmente, tornou-se uma voz de representação do seu povo no universo político.
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E é com essa bagagem que se apresentou a vaga na Academia Brasileira de Letras, em simultâneo à candidatura de outro escritor indígena, Ailton Krenak, que acabou eleito. Mas, como frisa na entrevista para a Gazeta, mantém a meta de ingressar na ABL.
Em sua obra, o senhor busca principalmente ser um porta-voz do povo Munduruku ou de todos os indígenas? Em que regiões seu povo hoje é mais presente?
Minha obra é mais ampla que falar ou apresentar o povo Munduruku para os leitores. Procuro ser o mais universal possível para não parecer que minha qualidade literária está baseada apenas na cultura de um povo específico. Costumo sempre dizer que sou um brasileiro nascido Munduruku para lembrar às pessoas que tenho uma raiz ancestral, mas meus saberes não estão concentrados apenas nos ensinamentos de meu povo. Gosto de pensar que escrevo para a alma das pessoas a partir dos saberes das gentes indígenas como um todo. Mas, claro, faço parte desse povo com muito orgulho. Sendo Munduruku, reafirmo meu ser brasileiro. Meu povo Munduruku está presente em três estados da federação: Amazonas, Mato Grosso e Pará, de onde sou oriundo.
A obra do senhor tem um viés de aproximação com crianças e adolescentes, especialmente estudantes. As gerações atuais estão mais conscientes da cultura indígena? Ou há muito a fazer, nesse sentido?
Há muito o que ser feito ainda. A literatura indígena existe há aproximadamente 30 anos, mas a colonização da mente das crianças e jovens (e da sociedade brasileira) já perdura há 524 anos. Não dá para querer que haja mudanças significativas em tão pouco tempo. Mas é bom saber que já há mudanças que estão acontecendo, e isso é graças à literatura indígena, sim.
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O senhor é membro do mesmo partido no qual atuou Mário Juruna, primeiro indígena na história do Brasil a se eleger deputado federal. Que exemplo ou legado Juruna deixou, e que o senhor entende como especialmente relevante?
Juruna foi eleito pela força política de Leonel Brizola. Sozinho ele não teria nenhuma força e pouco teria realizado. Claro que deixou um legado de luta que é reconhecido pelo partido e pela sociedade nacional. Porém, como diz o velho ditado: uma andorinha só não faz verão. Eu diria que nem muitas andorinhas fazem o verão porque o verão é autônomo e não precisa de andorinha alguma. Brincadeiras à parte, creio que Juruna foi importante para fazer a sociedade nacional tomar consciência da existência dos povos indígenas em sua diversidade cultural e linguística. Ele foi um grande guerreiro nessa luta e merece todo o nosso respeito.
O senhor também é do mesmo partido de Leonel Brizola. Chegou a ter proximidade com ele? E como avalia o legado dele?
Brizola foi o que se pode chamar de Brasileiro. Uma pessoa comprometida com o desenvolvimento do país que se pautava por uma crença inquebrantável na educação e na cultura de nossa gente brasileira. Dificilmente teremos um brasileiro com essa paixão tão à flor da pele. E ele não era um homem de discurso fácil para agradar. Ele ia no âmago das questões para lembrar à sociedade que sem uma revolução de base não se faria jamais a mudança necessária. Infelizmente, eu não o conheci em vida, mas estimo sua luta, sua fala, sua crença no ser brasileiro.
O senhor segue produzindo com regularidade em literatura? De que projetos tem se ocupado ou há obras por serem lançadas?
Quem tem uma produção literária ampla como a minha acaba se viciando. Eu estou o tempo todo pensando numa obra nova ou num jeito novo de abordar os temas que considero importantes para ajudar as crianças brasileiras a se aprofundarem em sua autoestima e orgulho de pertencer ao Brasil. É disso que minha obra trata, e eu continuo produzindo novos livros para continuar minha saga de ajudar o Brasil a ser mais Brasil e menos brasileiro. Ser mais árvore, com orgulho, e menos peões do sistema capitalista, que quer que sejamos apenas braçais produtores de riqueza. O Brasil pode ser mais.
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Nascido em Belém do Pará, o senhor chega a ter contato com os povos indígenas do Sul do Brasil? O que os aproxima ou irmana?
Tenho contato com povos do Brasil todo. Estou ligado a eles pela mesma mãe: a Terra. Nos tratamos como parentes e procuramos respeitar esse pertencimento e a fraternidade que nos une.
Que sonho o senhor alimenta em relação à forma como a sociedade brasileira lida com a cultura indígena? O senhor entende que houve mudança para melhor, nos últimos anos, no que tange a dar voz?
Acho que hoje em dia sinto ter realizado um trabalho que deixará legado para as futuras gerações. Houve muitos avanços, alguns retrocessos, atropelos. Os jovens indígenas estão avançando com muita criatividade, dominando as mídias sociais, as artes plásticas, a música, o cinema, a televisão, o teatro e a literatura. É uma galera criativa, comprometida e aguerrida. Acho que isso é resultado do trabalho que gerações como a minha fizeram para deixar um legado para eles. Posso me dizer feliz por ter participado deste processo todo.
Se o senhor pudesse passar um recado ao leitor, seja do campo ou da cidade, e de todas as idades, que lê essa entrevista, em relação à forma como os povos originários foram e ainda são tratados no Brasil, o que transmitiria?
Eu diria que o Brasil perdeu muito ao não se esforçar para entender a dinâmica da cultura dos povos indígenas. O Brasil certamente seria outro se tivesse tido a oportunidade de conviver com o modo indígena de ser, de entender e acreditar. Eu realmente acho que o País estaria numa situação melhor caso isso acontecesse. Agora, já que isso não foi feito, ainda há como fazer com que as novas gerações tenham acesso a esses saberes.
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Veja, há uma produção artística indígena que pode ajudar a sermos brasileiros melhores. Há música, filme, literatura, vivências, ciência a que as pessoas podem ter acesso. Portanto, caros leitores e leitoras, não tenham medo de estabelecer um novo encontro com os saberes indígenas. Não tenham medo de mergulhar na cultura ancestral que alimenta os saberes da tradição. Não receiem encontrar-se consigo mesmos experimentando a arte, a estética e a natureza que sempre alimentaram os corpos, a mente e o espírito de nossa gente ancestral. E tenho dito.
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