Dino Buzzati é um dos grandes escritores italianos. Seu livro mais conhecido, O deserto dos Tártaros, conta a história do tenente Giovanni Drogo. Ainda jovem, ele tem a missão de defender o forte Bastiani, situado em área de fronteira, contra uma invasão estrangeira. Mas os anos passam de forma repetitiva e tediosa, sem que nenhum ataque inimigo aconteça. Anos que se transformam em décadas, e eis que a vida de Drogo (e de seus companheiros) parece prestes a terminar. À toa.
Uma história de desencanto, segundo o crítico Antonio Candido. Ou de remorso. Arrependido também é o personagem de O gravador, conto de Buzzati publicado no volume As noites difíceis, em 1971. Pérola de concisão, tem pouco mais de uma página. Um homem está ao lado do rádio, tentando gravar suas músicas favoritas.
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Mas é importunado por barulhos: saltos batendo no piso, risos debochados, ruídos domésticos que se intrometem na melodia. E, infelizmente, “assim não era possível continuar”. Aparentemente, a causa de tanto incômodo era sua companheira. Mas, algumas linhas depois, sabemos que a mulher saiu daquela casa; “largou-o” e “ele não sabe nem de longe que fim levou”. O protagonista agora está sozinho, ouvindo a velha gravação e lembrando o que era realmente música divina.
Pois estava enganado. A música valiosa não era a de Purcell, Mozart, Bach, nenhum dos mestres. Era “aquele barulho, aqueles resmungos, aquela tosse, aqueles sons adorados, supremos. Que não existem mais”.
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Lembro do protagonista do filme de animação Anomalisa (2015), que se incomoda por viver num mundo sem originalidade, onde todos têm a mesma fisionomia e falam com voz idêntica (literalmente). Um dia, encontra uma moça com rosto e voz diferentes, e fica fascinado. Ao se aproximar, porém, ele se irrita por um motivo banal qualquer. É o que basta para a “anomalia” se tornar, gradualmente, mais uma réplica vulgar aos seus olhos.
Porque o problema é ele, não os outros. Ele apaga o brilho do que o cerca.
Ficar atento ao que importa de fato pode ser difícil. Só que mais difícil é um dia abrir a janela, como Giovanni Drogo, e ver apenas o deserto.
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