Não há quem não conheça histórias de sereias. Elas estão presentes na mitologia de praticamente todos os povos, principalmente em nações banhadas por oceanos, desde as Américas até a Oceania. Há lendas sobre sereias na França, na Inglaterra, na Polônia, em Angola, na Rússia, no Japão… Em comum, todas envolvem criaturas sedutoras que arrastam marujos ou banhistas para o fundo do mar com promessas falsas de amor e riqueza.
As sereias também estão presentes na mitologia grega, grande pilar da cultura ocidental. Nos poemas de Homero, o herói Odisseu topa com elas em sua longa jornada de volta para casa, após a guerra contra os troianos. Odisseu era muito ardiloso – cumpre lembrar que foi dele a ideia do cavalo de Troia – e, para evitar que seus marinheiros fossem seduzidos pelo canto das sereias, tapou-lhes os ouvidos com cera.
Porém, Odisseu, como capitão do navio, não poderia ficar surdo ao que acontecia a seu redor. Então, abriu mão da cera, mas amarrou-se ao mastro do barco para não se deixar levar pelas sereias – que, na versão grega, não tinham rabo de peixe, mas asas de pássaro. Consta que deu tudo certo.
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A presença do mito da sereia em tantas culturas pode ter duas explicações. Uma delas seria a tendência psicológica, compartilhada por todos nós, seres humanos, a imaginar criaturas míticas parecidas independentemente da região do planeta em que nascemos, conforme observado pelo psicanalista suíço Carl Jung (1875-1961). A outra, mais inacreditável – e, talvez, mais divertida –, é a possibilidade de que sereias realmente existam.
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Aqui no Brasil também temos o nosso mito particular da sereia. Diz a lenda que a sereia brasileira chama-se Iara e vive nas águas amazônicas. Em terra, fora uma grande índia guerreira, que sofreu uma emboscada dos irmãos invejosos. Acabou levando a melhor sobre eles, mas foi punida pelo pai, um pajé de coração duro, que mandou jogá-la entre os rios Negro e Solimões. Salva pelos peixes, transformou-se em uma sereia com as mesmas características e hábitos maquiavélicos das primas ao redor do mundo.
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A origem da lenda no Brasil, portanto, é indígena. Contudo, segundo o folclorista Câmara Cascudo (1898-1986), teve forte influência dos colonizadores portugueses, que eram grandes navegadores, mas sentiam um tremilico nas pernas ante o risco de topar com as mulheres-peixe no Atlântico. E haveria também certa influência da cultura africana na história.
Aprendi mais sobre a lenda da Iara esta semana, enquanto acompanhava nossa caçula, Ágatha, em um trabalho de aula. A tarefa era estudar personagens do nosso folclore e depois desenhá-los. Mas, quando chegou a vez da Iara, Ágatha ficou chocada ao saber que a sereia brasileira arrastava pescadores e navegantes para dentro do rio.
– É uma criminosa! – sentenciou.
– Criminosa?
– Sim. Ou acha que essas pessoas saíam passeando tranquilamente no fundo do rio?
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Esse é, de fato, um aspecto paradoxal dos mitos. Todo mito, ainda que brutal, tem sempre um sentido pedagógico. No caso das sereias, as lendas nos alertam a tomarmos cuidados com promessas de conquistas fáceis – não necessariamente amorosas, mas também de riquezas. Não à toa, chamamos tais promessas de canto da sereias.
Pensei em comentar isso com a caçula, mas achei melhor mudar de assunto. Ao perceber que ela já havia desenhado o Saci Pererê, sugeri que acrescentasse o escudo do Inter às vestes do personagem. Claro que foi uma brincadeira – afinal, Ágatha é gremista. A traquinas não achou graça da zombaria, aborreceu-se comigo e, por força da obrigação, concluiu a tarefa desenhando Iara ao lado do Curupira, seu personagem folclórico favorito.
O Curupira, porém, também é uma figura paradoxal. Na tradição indígena, é o protetor das florestas. Contudo, ai daquele que cruzar com ele durante uma caçada. Mas essa já é outra história.
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