A pandemia do coronavírus projeta cenário turbulento para a socioeconomia global. A exemplo dos contratempos que estão sendo vividos em dezenas de outras nações, também as finanças dos brasileiros tendem a ser duramente afetadas. Mas talvez poucos países tenham ambiente tão promissor quanto o Brasil para empreender uma retomada. Tudo porque uma das grandes bases da economia está no agronegócio. E o mundo, mais do que nunca, estará demandante de alimentos e de matérias-primas.
Quem faz essa leitura é um dos mais respeitados analistas de comércio internacional da atualidade no País, o paulista Marcos Fava Neves. Ele concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, por e-mail. Natural de Lins, cidade de cerca de 80 mil habitantes situada a 430 quilômetros da capital paulista, entre São José do Rio Preto e Bauru, Fava Neves é professor das Faculdades de Administração da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
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Engenheiro agrônomo formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), mestre e doutor em Administração, teve seu nome citado como possível ministro da Agricultura no atual governo. Também é professor visitante na Universidade de Buenos Aires e na Purdue University, em Indiana, nos Estados Unidos.
Com larga vivência e interlocução com especialistas, inclusive da China, maior mercado de commodities agrícolas do Brasil, Fava Neves enxerga oportunidades. Isso vale para os gaúchos, produtores de grãos, como soja, milho e arroz, e, claro, para o Vale do Rio Pardo, que tem no tabaco uma fonte de empregos e de renda. Para reagir, talvez o agronegócio possa trazer a energia para o impulso nos negócios e na qualidade de vida.
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ENTREVISTA
Marcos Fava Neves – Professor titular das Faculdades de Administração da Universidade de São Paulo (USP), especialista em planejamento estratégico do agronegócio.
Gazeta do Sul – O que ensina o “case” da China, que enfrentou e começa a superar a ameaça do coronavírus, sobre o provável ritmo da economia após a quarentena?
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Marcos Fava Neves – A China, que está em estágio mais avançado no combate ao coronavírus, está recompondo suas importações com uma política de elevação de estoques, consumidos durante os meses de parada. Porém, como parte dessa crise, a China exportadora ainda vai sofrer com a redução do crescimento mundial e menores importações.
Ainda, deve entrar firme comprando carnes e outros produtos do agro brasileiro neste semestre, sendo um fator positivo para nós, levantando os preços da arroba no Brasil e também das outras carnes. As cadeias de frangos, suínos e peixes creio que se beneficiam com mais exportações a preços melhores, principalmente as duas primeiras, mas terão como ponto negativo enfrentar insumos, principalmente rações, mais caras em reais.
A situação do Brasil neste início de 2020 sinaliza para que cenário de continuidade da economia no segundo semestre e adiante?
Um ponto de preocupação mundial, trazido em recente reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) neste final de março em documento conjunto lançado por ela, pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é o de garantir que cadeias globais de suprimento de alimentos não sofram interrupções devido ao coronavírus. Rússia e Cazaquistão já fizeram alguns bloqueios à exportação de trigo e outros produtos, Vietnã no arroz, Tailândia com ovos, entre outros casos que começam a pipocar.
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A FAO acredita em perturbações no sistema alimentar mundial, pois os isolamentos podem atrapalhar as atividades produtivas, restringindo fluxos de trabalhadores migrantes, exportações, problemas de colheita por falta de mão de obra, entre outros. Isso pode acabar sendo um benefício ao Brasil, que está sentado sobre uma safra recorde e pode colher frutos de eventuais aumentos de preços das commodities face a esses abalos das cadeias produtivas. Além disso, é uma chance para consolidar cada vez mais o Brasil como um fornecedor de alimentos confiável para a humanidade, que produz grandes excedentes para serem exportados, contribuindo para conquistar um espaço soberano no mundo, de nobre produtor de alimentos.
Creio que, na atual crise, países onde tínhamos grandes dificuldades acelerarão as permissões para acessarmos seus mercados com produtos do Brasil. E isso pode vir para ficar. O Brasil deve se posicionar para se oferecer como alternativa a um possível movimento de volta de políticas de seguridade alimentar em muitos países, depois dessa crise. É uma possibilidade, apesar de que muitos não têm recursos e competência para executar políticas de produção própria de suas necessidades alimentares.
Que medidas são fundamentais de parte tanto do governo quanto do empresário brasileiro a fim de suportar da melhor forma esse período e retomar as atividades?
Uma tendência que deve ganhar muita força é o aspecto sanitário dos alimentos, ainda mais depois dessa crise sanitária, e o Brasil deve investir pesadamente nos mecanismos de controles, sejam públicos ou privados, para garantir a segurança dos alimentos para os mercados internos e externos.
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Outra ação que pode representar uma oportunidade é que governos no mundo todo, inclusive no Brasil, terão de expandir gastos públicos para conter parte dos danos nos sistemas econômicos, da destruição de empregos e empresas, e uma parte importante desses gastos públicos irá para vouchers de alimentação, tentando garantir o básico para a sobrevivência das famílias, e isso pode se traduzir em aumento no consumo mundial de alimentos, ou, na pior das hipóteses, ajudar a neutralizar uma eventual queda.
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Pela forte inserção global do País, produtor de alimentos e matérias-primas, o agronegócio pode ser um trunfo para o Brasil suportar e superar melhor esse cenário?
Claro, neste momento de incerteza, o campo nos brinda com notícias animadoras. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) traz em seu boletim de março uma expectativa de produção de 251,9 milhões de toneladas de grãos, crescimento de 4,1% em comparação à safra passada, quase 9,9 milhões de toneladas incrementais.
Já para área cultivada, espera-se crescimento de 2,4%, chegando a 64,78 milhões de hectares. A soja deve bater recorde de produção devido às boas condições climáticas, chegando a 124,2 milhões de toneladas, com incremento de 2,6% da área. A área com algodão deve crescer 3,3%, enquanto o milho de segunda safra aumenta 2,1%. A primeira safra de milho registrou incremento de 3,2% na área e deverá produzir 25,6 milhões de toneladas. Aparentemente, a chuva vem caindo na segunda safra de milho, que é absolutamente importante neste momento.
Na carona desses bons preços em reais e da produção citada pela Conab, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) aponta para um Valor Bruto da Produção de 2020 estimado em R$ 683 bilhões (8,2% acima do valor de 2019). De fevereiro a março, a estimativa subiu praticamente R$ 9,1 bilhões. Deve subir ainda mais com esse novo patamar do real (desvalorizado). Nas lavouras, esperam-se R$ 448,4 bilhões sendo gerados (9% a mais), e na soja deveremos ter R$ 160,2 bilhões (16% a mais).
O milho também cresceu 15%, chegando a R$ 74 bilhões. Nas cadeias da pecuária, o valor está em R$ 234,8 bilhões, sendo R$ 1,3 bilhão menor que a última projeção, mas ainda assim quase 7% maior que o do ano passado. Imaginemos o Brasil doente e ainda sem a geração desse caixa, dessa renda, como estaria a situação.
Algum produto pode se beneficiar em especial? Como avalias a perspectiva dos produtos de exportação brasileiros para o futuro?
Continuam boas. Na soja e no milho temos situações bem confortáveis. Beneficiados pelo câmbio e por esses aspectos de consumo, os preços estão remuneradores e boa parte das produções vendidas já foi fixada; portanto, não são fontes de preocupação neste momento dos impactos da Covid-19. Devem até ter uma demanda maior para rações com o aumento das exportações de carnes.
Lembremos também que muitos agricultores fizeram compras antecipadas de insumos, portanto uma estratégia vitoriosa em tempos de real mais valorizado. Estamos colhendo a nossa melhor safra de soja da história, praticamente concluída, e no milho podemos chegar a 100 milhões de toneladas. Neste março foi batido o recorde histórico de embarque de soja num mesmo mês, com um total de 13,3 milhões de toneladas.
Neste ano, já embarcamos 21,4 milhões de toneladas, 17% a mais do que o primeiro trimestre de 2019. Somente em março, a China originou praticamente 10 milhões de toneladas (47% a mais que em março de 2019). No trimestre, os chineses compraram 16 milhões de toneladas, 17% a mais do que no ano anterior.
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Até que ponto o Brasil deve considerar a China como grande parceiro a fim de retomar da melhor forma possível sua própria economia?
Devido ao fechamento de alguns portos na Ásia e outras restrições, era esperada a queda em nossas exportações neste início de ano. Fechamos fevereiro com US$ 6,41 bilhões (Mapa), caindo 6,3%. As importações do agro caíram (11,2%), e o superávit cai para US$ 5,35 bilhões (5,2% menor do que fevereiro de 2019).
Grãos e produtos florestais perderam um pouco, apesar de as carnes subirem 11,3%. Temos de correr atrás, pois no acumulado do ano estamos em 8% abaixo do primeiro bimestre de 2019. Foram US$ 12,27 bilhões vendidos. Vejam que importante é monitorar o comportamento da China, pois quase 31% das nossas vendas foram para lá. A Ásia teria de compensar possíveis perdas na Europa neste ano. Tende a se fortalecer sim!
O que um empresário não deveria fazer agora para estar melhor preparado e se recuperar?
É fato que teremos um retrocesso no que vinha sendo feito no Brasil, e inevitavelmente teremos a volta parcial do Estado no sistema econômico, em algumas áreas, não descartando até a necessidade de se estatizar alguns serviços para depois voltar a privatizar, pois muitas empresas devem quebrar nesta crise. Resta a nós fazermos grande pressão para que a gestão desse processo seja transparente, eficiente e por pouco tempo.
O fato é que a crise do coronavírus nos mostrará um mundo diferente, podendo trazer maior solidariedade global e integração entre sociedades, algo meio esquecido. Momento de calcular mais os riscos, ter mais flexibilidade e adaptação, mais cuidado com o que foi chamado nestes dias de infotoxicação, ou seja, o excesso de informações falsas, alarmistas, desencontradas, que só prejudicaram as pessoas. Um novo aprendizado virá e novas pessoas vão se sobressair, e, no geral, sairemos desta com um aumento da nossa capacidade analítica. Simplicidade será a bola da vez.
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Como vês a condução da economia do Brasil e como imaginas que o País sairá dessa crise?
Um retrocesso que deve ser evitado nessa hora são iniciativas nos âmbitos estadual ou federal para aumentar a incidência de tributos sobre os insumos, sobre as atividades agrícolas, agroindustriais e as exportações, as quais são nocivas para a competitividade, o ganho de mercados e o consequente aumento das exportações e a geração de renda, e devem ser neutralizadas.
Tenho esperança de que neste momento de crise uma luz incida sobre a classe política para que ainda no segundo semestre de 2020 possamos concluir todas as importantes reformas estruturantes pendentes no Brasil, e que, para atingir esse objetivo, possam atender a um pleito que deve encontrar amplo respaldo da sociedade para se adiar as eleições municipais de 2020 para 2022 e, com isso, termos apenas uma eleição no Brasil a cada quatro anos. O momento exige sacrifício de todos, e o Brasil não merece sair de uma crise de que ainda não sabemos o tamanho e entrar em processo eleitoral.
É preciso, agora mais do que nunca, pensar em levantar nosso povo após esse inevitável tombo, com sacrifícios de todos.
A crise atinge em menor ou maior escala a muitos. O que ela pode ensinar para todos, indistintamente?
O mundo ajoelha-se ao vírus, que muitas mudanças trouxe em curto espaço de tempo e ainda trará outras. O agro, em geral, é um dos setores menos atingidos, mas isso não vale para todas as cadeias produtivas e todos os setores.
Um dos impactos positivos é o ganho de imagem ao agro brasileiro. Isso se deu por uma percepção coletiva da vantagem de brasileiros neste momento de crise estarem sentados dentro de uma fábrica de comida quando o mundo tem diversos casos de desabastecimento e gôndolas vazias, e também pelo grande número de ações de ajuda acontecendo, por organizações coletivas ou empresas, aos menos favorecidos na crise do coronavírus.
A CNA doou R$ 5 milhões ao Mapa, e frigoríficos financiaram a compra de testes, doações de usinas do setor de cana de álcool gel ou líquido para ser usado como antisséptico e laticínios doando leite, entre outros casos louváveis. E o setor se mobilizou fortemente para tranquilizar a população com documentos atestando o fornecimento de produtos, como fizeram Abitrigo, Abiove, ABPA, e muitas outras.
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