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O avô e a menininha

A dor passeia pela rua, é só prestar atenção. Nas minhas caminhadas pela cidade, uma cena me remeteu a uma pungente reflexão. Um senhor, já idoso, puxava seu carrinho de catador. Era cedo da manhã e ele estava na dura luta, buscava na incerteza encontrar descartes que lhe pudessem assegurar o pão daquele dia. Olhos atentos nas sacolas à espera do caminhão. Era preciso salvar alguma coisa antes.

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Dezenas de pessoas fazem isso em nossa cidade e até muitas vezes as ignoramos ou desprezamos. O fato, então, não é novidade. A diferença da minha observação está que, ao lado do carrinho, caminhava uma frágil menininha, talvez com seis anos. Encontrei-os duas vezes em dias seguidos. Na primeira, ela estava comendo salgadinhos, quem sabe provenientes de pacote recolhido numa lixeira. No outro dia, caminhava silenciosa ao lado do carrinho, talvez sonhando em encontrar uma boneca descartada, um pouco mais de comida, alguns trastes que fariam o avô feliz.

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Quando anotei o tema desta crônica, me deu um desconfortável arrependimento. Por que não estanquei meus passos para trocar algumas palavras com aquelas pessoas que assim me tocaram? Saberia se era mesmo avô e neta, saberia de sua morada, perguntaria sobre a escola, os irmãos, a mãe. Saberia da batalha diária daquele homem que começava a jornada confiando numa esperança improvável e imprevisível. Não fiz isso e, por enquanto, perdi o jogo.

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Caminhavam ali o passado e o futuro. O passado, o avô, com justificado ar cansado, puxando não apenas o carrinho, mas também uma longa história, o pesado fardo da vida. Seu olhar triste não disparava flechas, apenas um doído conformismo com tudo que “poderia ter sido e que não foi”, como dizem versos de Manuel Bandeira. O que a vida fez com ele para acabar tracionando uma carroça como se fosse um bruto sem capacidade? Certamente, sequer tem uma aposentadoria. Talvez nem acesse o bolsa-família que alguns, sem nenhuma necessidade, espertalhões, tomaram, deixando na fome quem de fato precisava desse parco recurso.

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A menininha, página em branco, jamais poderia imaginar ou compreender uma sociedade desigual, injusta, diferente. Talvez fosse como Baleia, a cadela personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos. Acompanhando a família retirante, todos com fome, com sede, ela, já delirando, sonhava com um campo cheio de preás, que lhe restituiriam a energia, a vida. A menininha estaria muito mais feliz brincando com os amiguinhos, olhando um desenho, acariciando a mãe e dela recebendo carinho, em vez de andar longe, sem rumo, até suas perninhas não mais suportarem a fadiga, a silenciosa dor, o precoce cansaço de viver. Não sei se o avô terá forças para, sentada sobre a colheita, puxá-la até o destino final.

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Paremos de apontar o dedo, de condenar. Essas não são as escolhas da maioria desses seres tristes, são necessários exercícios de sobrevivência. Certamente, se tivessem tido a oportunidade de estudar, de ter alguém próximo que mostrasse a importância disso, não carregariam pela vida o analfabetismo, o desemprego, o conformismo de que assim é porque assim precisa ser. Espero que aquela menininha não vá se deparar com um destino de puxar carroça pelas ruas de nossa cidade. Isso não se chama felicidade e ela merecer ser feliz.

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