Eram 4 horas da madrugada. Acordei em um sobressalto e constatei, conforme havia pressentido durante o sono, que minha esposa havia desaparecido. O que estava acontecendo?
Assaltado por pensamentos nebulosos, desses que frequentam nossas mentes quando estamos sonolentos, passei a fazer as piores conjecturas acerca do que teria ocorrido, enquanto reunia forças para vencer o frio e levantar-me. Teria a Patrícia fugido de casa, farta de minhas teimosias, dos rigores da quarentena ou das traquinagens da crianças? Mas, recobrando gradativamente a razão, dei-me conta da impossibilidade de tal dispara-te. O mundo acabaria antes disso acontecer.
Sem ter encontrado meus óculos, avancei abrindo caminho na penumbra, desviando do borrão formado pela cômoda, tropeçando nos chinelos. Decidi inspecionar o quarto da Ágatha e da Yasmin, o primeiro na rota rumo à cozinha. E me deparei com mais uma surpresa: Yasmin estava em sono profundo, mas a irmã havia, a exemplo da mãe, desaparecido.
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Foi então que escutei aquele barulho estranho ecoando pelas paredes da casa. Era um “ziiiinnnn”, semelhante a um motor elétrico, como de uma furadeira ou de uma serra. Ou seria um drone, sobrevoando a casa? Estaríamos sob ataque, na iminência de uma invasão? Teria estourado uma guerra, em meio a toda essa crise gerada pela pandemia?
Ainda sem ter encontrado meus óculos, avancei pela casa na direção de um borrão de luz que vinha do banheiro e, a meio caminho, vislumbrei minha esposa manejando o que parecia ser uma arma de fogo. E essa agora? A Patrícia, armada? E, pior, na companhia da Ágatha…
…
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A miopia, como dizem os oftalmologistas, realmente agrava-se com o passar do tempo. Lembro-me de, certa vez, ao fazer o exame de renovação da carteira de motorista, ter perguntado ao médico se poderia fazer uma primeira tentativa sem os óculos, para tirar da habilitação o aviso sobre a obrigatoriedade do uso de lentes ao dirigir. Por acaso o médico era o doutor Ferrugem, amigo de meu pai e dotado de grande paciência, nítida em sua voz, sempre serena. Foi com essa voz calma que me perguntou:
– E achas que tua visão melhorou com o passar do tempo?
Deixou-me sem argumentos, e fiz o exame de óculos mesmo.
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…
Desprovido de meus óculos, sonolento e emergindo da penumbra, demorei um segundo ou dois até relacionar a suposta pistola ao zunido que ecoava pela casa e concluir: era um secador de cabelos. Às 4 da madrugada, minha esposa lutava para secar a juba da Ágatha, que acabara de tomar um banho completo.
– Banho? A essa hora?
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As duas tentaram me explicar o estranho fenômeno que ocorrera, mas, conforme Patrícia admitiu depois, muitos mistérios ainda ficaram por ser esclarecidos. Ela fora acordada minutos antes pela caçula, que tinha os cabelos tomados por uma gosma verde que lhe dava aspecto fantasmagórico, fazendo-a lembrar o Geleia, a criaturinha adotada pelos Caça-Fantasmas no desenho animado.
Era slime, espalhado por todo o cabelo da traquinas.
Quem tem crianças em casa conhece esta estranha febre chamada de slime. Trata-se de uma massa sintética, vendida em potinhos, que desliza entre os dedos como… uma gosma asquerosa. Particularmente, não entendo que graça as gurias veem nisso, mas elas adoram.
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Tanto que a Ágatha, após perder o sono, naquela madrugada, decidiu abrir um desses potes de gororoba para brincar. Mas não lembra – ou prefere não revelar – o que aconteceu depois. Talvez tenha se distraído e deixado a massa gosmenta deslizar pelos cabelos, talvez tenha adormecido sobre ela.
Ao perceber o estrago, a traquinas decidiu, antes de pedir ajuda, limpar a cabeleira por conta própria. Isso ela também não contou, mas o descobrimos a partir dos indícios que deixou no banheiro – a pia repleta de slime e uma toalha igualmente empapada pela substância. Sem sucesso, rendida, foi acordar a mãe em busca de socorro.
Foi preciso bastante água quente, com o chuveiro operando no máximo, para salvar-lhe a cabeleira. E, em meio a tantos mistérios que envolvem o ocorrido, a única coisa que sabemos com certeza é que tirar slime do cabelo dá um trabalhão…